15/11/2014


dói saber que algumas pessoas já não querem olhar.
esse é um exercício em profundidade que requer a retoma
- algures entre Mnemosine e as águas do Letes -
de uma sede apoucada nas vertentes da pupila.
quantos fantasmas de Pátroclo aguenta um homem?
nem Tirésias saberá a medida: resta-nos um Hades,
se o hás-de ficou para trás, com o cadáver da amizade.


amadeu liberto fraga

 
The Waters of Lethe, por Thomas Benjamin Kennington, 1890

05/11/2014

"linguistmo" d'aprés Verlaine

não há qualquer argumento para este verbo.
chove. chove tão plena, tão impessoalmente
quanto este tempo é o indicativo do presente.
il ne pleut pas dans mon coeur comme il pleut
sur la ville. enxuto, assinei o orvalho e a noite.
mudei de nome para matar a sede enquanto
um velho professor sem casa, às portas do
dia se lembrava que era a hora de ser crente.
a angústia dobrou-me os lábios, o sábio lente
pensou que eu sorria. por respeito mantive
fechado o guarda-chuva. à chuva ninguém
sabe se choramos, se rimos. vi-lhe ideais
a brilhar por trás da barba sem alternâncias
causativas, vi um velho a rir como um menino
e achei que talvez não me ficasse mal voltar a
chorar. não sei se voltarei a abrir o guarda-chuva,
sei que a cada encontro é o que ele não diz que
me faz voltar àquilo que ainda não entreguei.
hoje choveu para caralho, tanto que aqueles
ossos molhados me incomodaram o tutano.
tenho um arrepio a assombrar-me os ombros,
tenho prazos a cumprir, horas a dever à cama.
escrevo apenas para dizer que os homens ainda
podem choram. que ainda não há imposto sobre
a dignidade.


amadeu liberto fraga
            


Old Man Walking, por Markos Ionos

01/11/2014

      ontem, trinta e um de outubro, vi muita gente mascarada a passear pela cidade, e estou certo de que muita gente preferiu a travessura à doçura. a maquilhagem, essa, pode remover-se, mas algumas máscaras - como a do cavaco - já caíram há muito e não há maquilhagem que o esconda da noite das bruxas em que se tornou a nossa mui nobre classe política. tive, assumo, esperança que algum culto satânico se desse ao trabalho de esfolar o coelho-mor, mas parece que o cara de broche vai continuar a chupar nas cenouras dos outros. 

      hoje, primeiro de novembro, vi senhoras e cavalheiros atropelando-se para chegarem primeiro às flores que logo abandonarão na lápide que raramente visitam: é preciso cuidado, o hábito faria o monge. o halloween, de tão português, foi importado dos estados unidos, lá aterrado talvez durante o romantismo e vindo de europas outras - onde serve para abafar o feriado mexicano dos mortos: para esse latinos vestir-se para vir à rua em parada e dançar, é expiar os seus demónios uma vez no ano. lavam a alma e retomam o seu quotidiano, como nenhum pilatos português pode já fazer. 

      esta parada, por metonímia, pode também corresponder a uma transmigração das almas que me leva para uma outra viagem: brittany maynard, americana, vinte e nove anos, não chegará à minha idade. mudou-se de san francisco - no flowers in her hair - para o oregon, estado que lhe permitirá pôr termo à sua vida. brittany tem um cancro em estado terminal e percebeu que less is more. decidiu viver em qualidade os últimos dias e tentar mudar mentalidades. hoje é o dia dos finados, mas é também o dia depois do aniversário do marido de brittany, dan diaz. primeiro de novembro, o último de brittany. penso no fuso horário e sinto-me absurdo: não é tarde, é cedo... e ainda assim, talvez os tempos verbais estejam todos errados. talvez brittany já tenha partido. 

      já não sei o que é a solidão, não posso saber: neste momento, seria, suponho, alguém a olhar para a combinação de pharmakoi que porá fim ao seu respirar. o cavaco, o coelho, a síria, os curdos, a malala, hoje, ficam um pouco lá atrás, ruído de fundo que retomarei dentro de algumas horas. pergunto-me se aquele casal celebrou o aniversário dele, se perceberam que o halloween nunca mais será a mesma coisa para quem os ama, pois juntaram, na memória dessas pessoas, vida e morte. sinto, sim, sinto que me torno aos poucos um voyeur vicioso e percebo que está na hora de dar este texto por finado. se hoje me saísse um poema, seria sobre e para brittany e dan. mas não me sinto capaz. 
      
amadeu liberto fraga

Danse Macabre in Igreja de São Nicolau, Tallinn, Estonia, da autoria de Bernt Notke (1435-1509)