13/02/2015

(nunca é tarde para o que não pode ser mudado)



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/ 16h10min. saio de casa. dirijo-me à paragem em que apanho o autocarro. três ou quatro paragens adiante, deparo-me com um grupo de homens sorridentes a assaltar um automóvel. dentro do autocarro, iphones, telemóveis, tablets e afins, servem para registar o acto, enquanto os assaltantes acenam em poses cinematográficas. chamar a polícia para quê? /


/ 16h35min, desço do autocarro nos Aliados. encaminho-me para o meu cabeleireiro, quando sou abordado por um tipo da minha idade que me explica que está a viver na rua com a namorada há mais ou menos um mês. entrego-lhe alguns cêntimos por acreditar, por acreditar que se alguém estivesse na rua há mais tempo não me pediria desculpa pela abordagem. com os olhos marejados, e por cortesia – suponho –, pergunta-me em que trabalho. respondo que trabalho numa livraria e que escrevo nas horas vagas (ou ao contrário?). ele pergunta o que escrevo e eu respondo: “poemas, na maioria das vezes.” ele responde-me: “shiiiiii… estás fodido! eu era músico, pá! olha, não deixes a livraria.” despeço-me com um aceno e subo a rua para o cabeleireiro. /


/ depois do senhor que semanalmente apara o bigode, sento-me. confirmo com um lacónico “o costume” e, daí a instantes, acabo surpreendido por um casal de alemães que fotografa o estabelecimento que se conta entre os mais antigos da cidade. suspeito que fico na fotografia, corte a meio, novelos de cabelo aos meus pés. riem-se para mim como se fizesse parte de um anúncio publicitário e afastam-se. mais alguns minutos e, lá fora, uma rapariga deixa o carro descair na fila ao arrancar no trânsito, batendo no carro de trás. levanto-me, visto o blusão, pago e saio. enquanto desço a rua, a discussão escala. /


/ 17h25min, encaminho-me para a paragem, não sem antes passar por uma livraria na qual cumprimento alguns amigos e aproveito para espreitar o Morada, do Rui Pires Cabral. passo ainda num café onde tomo um e ponho a conversa em dia com a rapariga que lá trabalha. dou graças pelo decote nosso de cada dia, pago e saio. /


/ ao cabo de meia hora na paragem, entro no autocarro que me leva de volta a casa. durante a viagem, duas senhoras na casa dos setenta encetam uma discussão por causa de um lugar. a violência verbal faria corar um pós-doutorado em vernáculo. divididos entre a surpresa e o riso, ninguém se atreve a arbitrar. três passos adiante, o autocarro seguia meio vazio. quase em casa creio reconhecer na frente do autocarro um antigo colega de escola, enquanto recordo uma historieta que este confirma ao voltar a cara. /


/ 19h menos uns trocos, aproximo-me do portão de minha casa. sou abordado por um indivíduo que sonda: “o que deseja?” respondo com um seco “boa noite” e acrescento “desculpe, não percebi...” olha-me com desagrado e repete: “perguntei o que deseja daqui. está a entrar numa zona reservada.” olho-o de cima a baixo e respondo: “eu é que lhe pergunto o que deseja. moro aqui desde que nasci e nunca o vi por cá.” depois de esclarecida a situação, fico dividido entre a pouca vontade de dar as boas-vindas ao novo vizinho e o quase irreprimível desejo de o esbofetear por me confundir com um assaltante apenas “por estar todo de negro.” /


/ casa. tomo um banho, janto em família, escuto como foi o seu dia. levanto-me, passo pela casa de banho e olho o cínico no espelho, lançando-lhe um esgar. observo o corte, podia ter ficado melhor… vou para o quarto-escritório, sento-me a ler o tão mal comentado “poema da bilha” do Herberto, incluído no seu mais recente A Morte sem Mestre. fico a saber que o gás de três dias é suficiente para um tipo se suicidar. fico a saber que o poeta pede o gás fiado, ou pedia. a folha da dívida acabou-se, até para o Herberto Helder. /


/ 21h e uns minutos. releio o poema, concentro-me agora na transição feita da bilha de gás para as câmaras de gás. Herberto parece afastar a sua proposta de suicídio ao ponderar, talvez, que seria indigna uma morte por gás, ante as mortes atrozes do Holocausto. arrepio-me, e o quarto até está bem aquecido. na minha cabeça começam a ressoar palavras: “se eu fosse judeu”, “se esta europa fosse nazi”, se e mais se. volto-me para o portátil e desato a escrever, com uma vontade que não vale a pena explicar. uma dor na coluna pede-me cama, mas ainda é muito cedo. ainda é cedo para tanta coisa, afinal. acabo a pensar que o Echevarría devia vencer o Correntes d’Escritas deste ano. está quase a fazer anos e se um livro, com quase 500 páginas e aquela qualidade, não é prova de vigor poético, então não sei o que será. refiro-me ao seu Categorias e outras Paisagens, pois claro. /


/ 23h42min. já dei duas cabeçadas no ar sem deixar cair o Herberto. parece-me um feito. já sonhei que estava na Póvoa e que o júri tinha escolhido mal. sonhei que passeava pela biblioteca de praia e que me deparava com uma ex-namorada que lia um autor que eu abomino. as paixões têm disto: um homem desiludir-se pelo que a namorada lê. meio a dormir desato a repensar porque foi o Herberto para a Porto Editora. e se terá alguma relação com a compra da Assírio por esta. e com a criação das chancelas Sistema Solar e Documenta, por esse vulto que ainda dá pelo nome de Manuel Rosa. /


/ 23h57min. olho para o Herberto, ali do meu lado. sei que nunca escreverei assim, nem devo tão-pouco desejá-lo. o pior que se poderia desejar a um poeta de tal calibre seria um pior que mau seguidor por prémio, depois de recusado o Pessoa. lembro-me que escrevi em tempos um poema em que surgia a figura de um sem-abrigo. como diria o Sartre, nunca um poema salvou alguém. e é por isso que agradeço a gente que se voluntaria para ajudar essa outra gente que é, afinal, a mesma. gente que recolhe meias, cuecas, casacos, o que houver a recolher, para dar a quem não tem. gente bonita por dentro, tão distante de algumas que fui vendo hoje, ao longo deste dia salvo apenas pelo Herberto e por algumas lembranças. porra, que esta noite faz frio. /

amadeu liberto fraga