pela sua força telúrica, sobretudo por traduzir na sua poesia o devir moçambicano, haurindo, de forma excepcionalmente esplendorosa, o ser e o modo moçambicanos. Knopfli emprestou-nos a modernidade, o ecletismo e o complexo entendimento de que os dogmas identitários não podem nem devem explicar facilmente a moçambicanidade (2).
Com efeito, apenas pesando a tradição de toda uma poesia se podem citar, a contrapelo, nomes tão díspares como Rui de Noronha, Orlando Mendes, Reinaldo Ferreira, Noémia de Sousa, Alberto de Lacerda, Rui Nogar, Glória de Sant’Anna, Sebastião Alba, Grabato Dias, Eduardo White ou Luís Carlos Patraquim. Estes como tantos outros, que me abstenho de aduzir, no entretecimento de uma poesia assente nas experiências geracionais, foram deixando o seu particular.
Os primeiros anos da Independência ficaram marcados pela denominada poesia de combate. Esta literatura, de profundo valor histórico, constitui testemunho da construção de uma nação e abriu, certamente, as portas para o que teria lugar na década de ’80: apoiadas pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco, surgirão aquelas vozes que, na colecção Autores Moçambicanos, se começarão a distanciar da antecessora geração literária (sem, por isso, se despirem de algum espírito interventivo). Luís Carlos Patraquim, Sebastião Alba ou mesmo Jorge Viegas são alguns dos nomes que começaram a afastar-se do combativo Nós, em direcção a uma poesia vincada pelo lirismo intimista, na qual o Eu subjectivista toma meandros despidos de qualquer aproximação colectivista.
Some-se a este facto, o nascimento, em 1982, da AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos, que irá divulgar novos autores. As revistas literárias Charrua e Forja albergaram muitos dos autores da AEMO, além da Gazeta de Artes e Letras, da Revista Tempo, que divulgou poetas e ficcionistas da nova vaga. A não desprezar, o papel relevante de suplementos como o Diálogo, do Diário de Moçambique, ou Literatura e Artes, do Notícias.
No ano de 1985, Manuel Ferreira edita o terceiro volume das suas antologias dedicadas a África, No Reino de Caliban, sobre Moçambique. Em 1988, na cidade da Beira, comemorando os dez anos da página Diálogo, os mentores desta (Heliodoro Baptista, Julio Bicá, Simeão Cachamba, entre outros) editaram uma antologia do percurso do suplemento, à qual chamaram As Palavras Amadurecem. Em 1993, em Moçambique, surgiria a Antologia da Nova Poesia Moçambicana, organizada por Fátima Mendonça e Nelson Saúte. Esboçado que fica, em traços rápidos, o caminho nem sempre fácil desta literatura “jovem”, forjada
Entre a necessidade de reivindicação da moçambicanidade e do espaço para a gestação de uma Nação – Noémia e Craveirinha são os nomes mais emblemáticos – e a afirmação de uma pluralidade que se distancia dos propósitos imediatamente ideológicos ou contestatórios da ordem então estabelecida – Knopfli – a poesia moçambicana intenta hoje uma singular viagem de descoberta (3).
O intimismo parece dominar a actual poesia moçambicana, talvez na tentativa de sarar uma ferida que teima em abrir ainda nas páginas do complexo quotidiano de Moçambique. Mais do que interpretar, esta poesia reinterpreta e exorciza, elevando-se do mundano para um registo que transfigura metalinguisticamente o real colhido, “porque é na palavra que muitas vezes está, / perdido ou escondido, / o outro homem que no poeta reside” (4).
Ingrata tarefa a da crítica, que, ao longo de décadas, tentou aproximar a obra de Rui Knopfli daquilo que consideravam ser uma nova poesia. Ancorada em axiomas que predominaram na década de ’50, como lidaria a crítica com aquela poesia híbrida, a um tempo lírica e eclética, barroca e depurada, sincera e cáustica, moçambicana e europeia? Nascido a 10 de Agosto de 1932, em Inhambane, e educado na então Lourenço Marques, este homem singularizou-se na poesia moçambicana, bem antes de Eduardo White nos mostrar a sua voz (a meu ver, nem sempre tão bem conseguida). Ainda hoje parecem existir largos equívocos quanto à obra knopfliana, “subsistindo uma vaga e subliminal resistência na adesão cabal a uma obra que se não sabe como situar dentro dos discursos poéticos vigentes na língua portuguesa” (5).
Desde a primeira hora, Knopfli apresentou-se rigoroso à escala clássica, sem nunca deixar o temperamento lírico resvalar em excessos discursivos. Prova disso será o poema “Despedida” (6), incluído em O País dos Outros (1959). A estilização de uma Renuntiatio Amoris, que remonta a Ovídio e nos chegou pela pena de Camões, é aqui exercício de uma depuração extrema, que nos faz recordar “Adeus” (1950), de Eugénio de Andrade (7). Perante a antecipação da despedida, Eugénio diz-nos: “Já gastamos as palavras pela rua, meu amor, / e o que nos ficou não chega / para afastar o frio de quatro paredes”, enquanto Knopfli nos anuncia: “Tudo entre nós foi dito”, como se nem espaço houvesse já para nomear, no outro, a palavra “amor”. E o frio que nada consegue afastar, aparecerá em Knopfli exteriorizado num Outono
decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
que se adivinha fora de época, como o presente impossível de cumprir. E a saudade, instalada precocemente no presente vivido, permite a Eugénio lembrar que “Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro”, enquanto em Knopfli o abandono é previsto na sua irreversibilidade desde o primeiro verso, restando
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Ora, é esse mesmo mármore que parece aproximar Luís de Sousa Rebelo (8) à filosofia de matriz grega que aflora nos versos de Ricardo Reis, em “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. O silêncio que os amantes de Reis preenchem ao dar as mãos, advém, em Knopfli, das próprias palavras que “entre nós (…) colocam um mundo / de silêncio e vazio estéril” e que, de modo um tanto ataráxico, deixam os amantes “cansados e tristes”, olhando o “apodrecer do parque, / o vento, o crepitar leve das folhas”, até lhes restar apenas dizer adeus, porque, e bem o sabia Eugénio, em momentos de ruptura, “o passado é inútil como um trapo”.
O retomar de certos temas foi, para Knopfli, um meio de pôr em prática a descontrução de discursos instituídos, por vezes munido de uma ironia insuspeita, o que sucede, entre outros, no caso do poema “Terra de Manuel Bandeira”, também do seu primeiro livro. Misturando o quotidiano com uma elevação às vezes cosmosófica, somos confrontados com reflexões que não estariam na competência de outros poetas. Veja-se, por exemplo, como nos propõe um roteiro pela Ilha de Próspero (1972), e, depois de nos surpreender com lendas da ilha e a ausência celebrada de monumentos, somos confrontados com a “Mesquita Grande” (9). A ilha é, afinal, um “raso Olimpo argamassado em febre / e coral” em que
o Deus maior sou eu. Por mais
que as pedras, os muros e as palavras afirmem
outra coisa, por mais que me abram o corpo
em forma de cruz.
marcando, sem margem para alternativas, uma concepção de civilidade muito prévia à de Próspero. Ficamos perante um daqueles raros momentos em que a voz de Knopfli se despe da sua individualidade, para univocamente proclamar na voz de um Caliban – a voz, afinal, de todos os nativos daquela ilha – que a conquista foi uma falácia:
Pórticos, frontarias, o metal
das armas e o Poder exibem na tua sigla
a arrogância do conquistador. Porém o mel
de tâmaras que modula o gesto destas gentes,
o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,
a lenta chama que lhes devora os magros rostos,
meus são. Dolorido e exangue o próprio
Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada
magreza de um velho cojá asceta.
Embora escreva num português enxuto, pouco dado a corruptelas ou ao léxico de origem dialectal africana, nem o latim escapa a Knopfli, e “às doces inflexões do cantochão latino” responderá aquela outra raça, a quem Caliban roga: “raça de escribas, mandai, julgai, prendei: / Só Alá é grande e Maomé o seu profeta”.
Se a este texto juntarmos o que fora já prenunciado, tão-só duas páginas antes, naquele “Terraço da Misericórdia” (10) em que “As sombras salmodiam tristemente / versículos do Corão” ficamos perante o chamamento a uma África poli-dialectal, com muito pouco de monoteísta (apesar do foco aqui nos ensinamentos do Corão), e que não esquece as acções de Próspero mesmo quando dentro da “Capela” (11):
A cor é fria, o branco quase cinza
e as púrpuras do retábulo simulam
fogos morrentes onde crepita
o fulgor mais vivo de uma ou outra
rara chama. África ficou
ao umbral das portas, no calor
da praça.
Contudo, ironicamente,
sob um baldaquino hindu
e num desvario de cores e santos hieráticos,
salta o púlpito oitavado e é o Oriente
que chega com seus monstros.
e o grande cisma do Ocidente é invocado, pois
Do silêncio fita-nos um rosto trifonte
e nós estamos na encruzilhada
cismática desse olhar que se prolonga,
nos examina e considera.
Este, como outros poemas de Knopfli, comporta implicações às quais seguramente não acedo na plenitude, e mostra bem, creio, o porquê da estranheza da crítica perante uma obra tão prenhe de sentidos. Mas não se pense que a inépcia da crítica levaria o poeta a uma lamentação metafísica pseudo-pessoana. Não. Ao invés, a sua resposta surge, desde logo, no seu poema “Contrição” (12), do volume Mangas Verdes com Sal (1969). Com um sarcasmo contundente, Knopfli satiriza os seus detractores, que insistem em ler-lhe influências que podiam muito bem ter vindo de obras que não coincidem com as que a crítica refere.
Seja uma palavra, uma imagem, nada parece escapar ao escopo desfocado de uma crítica a que o poeta responde remetendo, entre outros, para o universo anglo-saxónico que lhe era tão caro:
Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen
e Dylan Thomas. No grego Kavafi,
no chinês Po-Chu-I, no turco
Pir Sultan Abdal, no alemão
Gunter Eich, no russo André Vozenesensky
e numa boa mancheia de franceses. Que desde
a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.
Que subtraio de Alberto de Lacerda
e pilho em Herberto Helder e que
– quando lá chego e sempre que posso –
furto ao velho Camões.
China, Turquia, Rússia, Grécia, Alemanha, França e até os portugueses Camões, Alberto de Lacerda e Herberto Helder, que haveria de publicar na revista Caliban, são convocados numa erupção de influências, de entre as quais Fernando J. B. Martinho viria a destacar a anglo-saxónica (13). Em ensaio coligido para publicação na Gulbenkian, este crítico recorda que, tanto por via da literatura, como por via do cinema e do jazz, a referência cultural anglo-saxónica vai ser acolhida, em parte pela proximidade com a África do Sul, pelos intelectuais “euromoçambicanos do período antes da Independência”. Já Noémia de Sousa, por exemplo, acolhera as “vozes de lamentação” que não vinham senão dos spirituals. E Knopfli, em Sketch Book, conjunto de quatro poemas que havia incluído em Reino Submarino (1962), aproxima-se do universo do jazz. Posteriormente, todavia, removeu esse conjunto do tomo supracitado (pelo que não pude aceder aos mesmos, dado que apenas encontrei edições recentes, distribuídas em Portugal pela Imprensa Nacional).
Porém, o jazz e os jazzmen voltarão a aparecer em Mangas Verdes com Sal, o mesmo livro em que se conta “Contrição”. A primeira parte, Nunca mais é Sábado, é precedida por uma citação do Book of Jazz, de Leonard Feather, que o poeta toma para si: “…threw conventional beauty out the window to concentrate more fully on matter rather than manner”. O jazz surgirá depois em textos da secção O Dente do Siso, em que o poeta se vai debruçar sobre Miles Davis e o seu estilo despido de efeitos e sobre Thelonius Monk, com a sua imprevisibilidade. A intertextualidade cresceu dentro da poesia de Knopfli, alicerçada numa sinceridade sem par, sem pruridos, e o jazz, o rock, o cinema, enfim, o exílio, adensificariam a obra deste cidadão da poesia. Os seus alargados interesses, no entanto, não obstaram a que mantivesse bem presente o seu horizonte poético, nunca abdicando da lúcida vigilância a que sempre obrigou o seu labor.
Alude mesmo a um rigor clássico, em “Não Obstante…”, também do livro Reino Submarino, quando nos explica o seu método: “eu trabalho, dura e dificilmente / a madeira rija dos meus versos, / sílaba a sílaba, palavra a palavra, num registo próximo do que se encontra na Arte Poética (Carta aos Pisões), de Quinto Horácio Flaco: “Nec uirtute foret clarisue potentius armis /quam lingua Latium, si non offenderet unum /quemque poetarum limae labor et mora”.
Se a esta consideração juntarmos o cerco da crítica, percebemos melhor porque reescreveu tantas vezes, ao longo da sua obra, a sua Ars Poética. Percorrendo um caminho de memória que o leva por um itinerário espiritual – algo semelhante ao de T. S. Eliot, desde Terra Devastada até desaguar nos seus Quatro Quartetos (14) –, Knopfli meditará também acerca da temporalidade. É talvez em Máquina de Areia (1964) que o autor melhor o fará: a transitoriedade que desagrega o quotidiano trará um tom confessional q.b., despido de qualquer ironia, em que as cinzas do passado se diluirão na tinta para recuperar seres e objectos da usura do tempo. É um tomo do qual saímos salvos, reconciliados com a nossa própria existência.
Knopfli apresenta-nos, em “Pirâmide” (15), a uma música que cura, uma “Doce música de areia leve, / contínuo sibilar de horas” por onde se pode, tal como o poeta, seguir, “quase alegre, quase sem remorso, / vertical, amargo e tímido / ó implacável máquina de areia”. Mesmo que os retratos de família tragam amargura e saudade, já que “Breve chega o instante de se olhar /o cadáver do amigo”, a verdade maior assomará à flor dos versos, para relembrar:
Ali estendido ele não tem idade,
parou de envelhecer,
(…)
eu sou agora umas horas mais velho,
um pouco antigo e dolorido na penumbra.
Sempre presentes estarão “os que atravessaram o grande rio”, na arquitectura de gestos que agora encontram o vazio da ausência, enquanto
A parábola das horas
traça no espaço os trilhos da memória:
Um resíduo de tempo persiste,
imprime uma lembrança ténue,
imperceptível nervura no rosto
acumulado dos dias.
Estamos, pois, não perante um registo poético do quotidiano fugaz, mas em face de uma transmutação em que o espírito intui o destino do Homem na inexorável corrente do tempo: o esquecimento é, afinal, o que nos salva da loucura. Na segunda parte do livro, em “Visitação” (16), apõe-se uma linguagem do desejo, em que mesmo a despedida detém um cariz erotizante. A tónica, contudo, permanece no discurso da memória, que agrega todo o livro. Mas o erotismo é sublimado num fluir de vicissitudes biográficas, que o poema – “biofágico” – expurga da comezinha pena para se elevar, ex machina, como o grande triturador do desejo. Homem e mulher refundem-se na infância, “Crianças sem memória / somos o riso mortífero / que sabendo tudo ignora”, assentindo que, da sua inocência, ardem “Na escuridão e na distância. / Quase longamente”, sabendo, de antemão, que
Os músculos e o sangue e os nervos
reaprendem cautelosamente o caminho
que os olhos desvendam no dia claro.
A liberdade é a ressurreição.
Chegado a O Corpo de Atena (1984), Knopfli pondera o problema da criação, escavando sentidos a partir de signos e sons:
Atena, deusa do saber na mitologia grega, será objecto do culto ritual do poeta, que emprega toda a alquimia do verbo para entrar no âmago dos seus mistérios. A imagem que surge com frequência é a “lâmina e o sangue”, numa associação ritualista que tem a haver com o culto de Apolo e só por extensão metonímica se pode vincular ao corpo de Atena (17).
A contemplação do corpo de Atena esconde o aprofundar de um mistério que a escrita não penetra. O poeta vê-se confrontado, no poema que dá nome ao livro (18), com o seu mester, que é afinal, o de um cego bicho humano:
Proscrito da luz, o irmão
de Orfeu desconhece o óbvio
(…)
A cegueira é sua condição.
Os filhos de Mársias são cegos,
ou perturba-os uma visão enferma.
e adiante, com “O Escriba Acocorado” (19), no “neutro olhar sem órbitas”, permanece fitando “mais além”, “Nesse olhar / de não ver tudo” em que se inscreve, “repensa e adivinha: teus limites /e, ainda, o que excederia tua humana // estatura”. Na Primavera de 1996, Rui Knopfli cedia entrevista a Francisco José Viegas (20), a partir de Londres. Nela assumia a saudade de Portugal. Questionado sobre o distanciamento que prejudicava a divulgação da sua obra poética, respondeu, depois de uma vida dedicada ao ofício poético: “Em Portugal, além do mais, não sabem onde me situar. Sou uma daquelas criaturas que ninguém sabe onde situar.” O poeta dizia que
não é muito cómodo, mas é aquela em que a gente acontece, com as coordenadas que há para seguir (…). Quer dizer, eu sei, lá no fundo… Eu sei que sou da Língua Portuguesa, sei que a minha cultura é portuguesa, e os meus mestres são o Camões, o Pessoa, (…), são as leituras do Herberto, do Alexandre O’ Neill, do Sena e, depois, aquilo que a gente vai roubando de outras culturas.
Passando a conversa por Ilha de Próspero ou por O País dos Outros, Knopfli recorda que, a dada altura, estava triste com a sua memória de Moçambique até Noémia de Sousa lhe ter dito: “Estás totalmente enganado; se há gente que te admira é a nova geração.” Esta apresentou-o a Nelson Saúte, que o saudou com um abraço afectuoso, e Rui Knopfli redescobriu como a sua poesia ainda dizia algo a Moçambique.
A entrevista prossegue, retomando o livro Ilha de Próspero, que o autor lamenta ter sido, a dada altura, lido como um guia, ou um coffee-table book. A colonização e o que a precedeu é chamado, a propósito, pelo poeta, que acaba por deixar bem claro que o título O País dos Outros não era para os brancos… Seguem-se memórias do 25 de Abril, da sua saída do Tribuna, relembra como Luís Bernardo Honwana disse a vários amigos mútuos que a Frelimo se tinha portado mal com ele e a sua saída de Moçambique em ’75, ao contrário do que certas vozes quiseram fazer crer.
Sempre crítico, aponta o dedo àqueles que vestem a farda de escritor e são mais pose do que obra, para adiante se definir: “Eu sou das poucas pessoas que não andei a fazer a estratégia da glória, nunca pertenci a nenhum lobby no poder, fui sempre uma espécie de voz discordante.” Em 1997 sairia Monhé das Cobras, com aqueles poemas que Knopfli referira a José Viegas, numa edição da Caminho. Quando o também poeta e ensaísta David Mourão-Ferreira indagava
Moçambique arriscar-se-á, a breve trecho, a compartilhar a sorte da Tanzânia – a qual, em duas gerações, deixou de ser país de expressão oficial alemã para se tornar mais um, dos que na região abundam, de expressão oficial inglesa. Mas quem ouviu o grito de José Craveirinha? (21).
talvez não aguardasse uma resposta de Rui Knopfli. Porém, aquele que seria o último livro deste, parece responder-lhe, ao mesmo tempo que continua a sua ruptura com a crítica. Quando se esperava que esta aceitasse melhor a sua poesia, no que ela bebia do mundo anglo-saxónico, o poeta direcciona, como nunca, o seu discurso para África.
A memória (consentida) de África levará Knopfli pelas emoções de um tempo dourado, em que a figura encantatória de um mago manipulador espalhava prodígios pelos dias. As cidades de África do Sul já não trazem o bafo de uma Europa distante, o que será explicável, quiçá, pela mundividência do exílio londrino que gastara o fascínio europeu de outra idade. As reminiscências darão vívida cor à sua africanidade e o processo de rememoração – tão fotográfico quão poeticamente metaforizante – tirará ao pó do tempo pormenores de uma cronologia pessoal que darão a mão a uma palavra de rigor sempre clássico, com travo amargo e com apontamentos, aqui e ali, de um embargo da voz que se lia premonitório.
Abrindo com o tomo Os Nomes, Os Lugares, o livro pinta o retrato d’ “O Monhé das Cobras” (22),
envolto em alvos panos e silêncio,
está. O pudvém cobre-lhe o escroto
e sobraça-lhe as pernas magras e finas
de esquálido aracnídeo. No topo o turbante
e a barba anciã oscilam na brisa matinal.
preparando o leitor para o sortilégio: “Principia, então, a enfeitiçar o dia, / com exactos gestos rituais”. No poema seguinte percebemos que aquele menino, o que ficava paralisado de medo a olhar o ancião, traz para o presente a geografia íntima que o poeta ritualiza: lugares da infância e descrições da sua mãe. Daí, avançaremos para uma “moringa” e para o sabor daquela água “matando a primeira de todas as sedes”, seguida por mais memórias que nos trarão à presença d’ “O Curandeiro” (23), que “lança os ossos e antevê futuro e curas.” A adolescência brota já dos ensinamentos de “Madala” (24), e vem acompanhada de “espadas nuas”, “o estrondo dos disparos, o cheiro da pólvora.”
Ao “Passanoute” (25) opor-se-á Hugh Lemay e os comics, seguido de memórias d’ “A Casa da Areia” (26), as Oficinas Gerais dos CFM, até à visão adulta de “Artemisa e Não” (27):
Artemisa, não a deusa da mitologia,
Artemisa de seu nome, deusa por mérito próprio,