30/12/2018

INSISTÊNCIA, de Edmond Jabès *

§

História de Cabelos 


I

Cortámos as madeixas de água e as madeixas de sal do mar

Aparámos o rochedo e os seixos 
Uma escova e cabelo para fazer uma árvore
Varremos a praia 
e no mar rejeitámos os cabelos inúteis com algas

II

O rio longa barba ruiva rente ao joelho do meu país
Cabeleireiro ousado
dias e noites
nunca a horas

III

Descem a colina
os olhos mais azulados que a fome dos tubarões
mais azulados que as axilas do céu
do amanhecer debruçando-se sobre a terra 


§


História de Pedras 


I

Segredo da pedra vazia

que a picareta procura perfurar
onde o sol jamais penetra
Quanto terão de perseverar
Debruçados sobre o seu ferimento
a única riqueza
eles ignoram até onde a febre os doura

II

Dia batido na sua cave, na sua asa
batido no seu sexo de hermafrodita
dia de sangue nos templos da onda
e na palma dos mergulhadores
Um nome de flor na boca
Um nome de chamas no rasto das borboletas
no fundo das ruínas

III

Não podemos gravar senão um nome
um de cada vez
na morte
não temos direito senão a um elogio fúnebre
a um só epitáfio



§

História de Viagem 


I

O restolho do exílio
o mais terno dos limites
a sua sombra no diário de viagens
como uma rosa

II

O barco liberta-se da constrição do porto
como os braços exauridos de uma mulher
o esquecimento sobe a bordo

III

Amanhã não reconhecerás a terra

os cabelos brancos como o mar
ou careca como a colina
uma árvore para bengala
Amanhã não mais terás nome
Não furarás passagem
por entre ombros anónimos
Uma viúva estenderá os seus lençóis
na linha do teu horizonte

IV

O galo para cata-vento
A coruja para espelho


§


História de Palavras 


I

A tempestade com os seus porta-canetas desesperados

Não se lê tudo o que na terra está escrito
Da mais bela mensagem o padeiro fará talvez o pão
e daquele de cada mulher amada como apenas tu
cujas cartas concordam sob os passos do homem
entre as espigas de trigo então balançando ao sol

II

Matilha de dias alargados
de escritos espólios de caça
A trompa convoca cães espingardas
A ilha inundou os seus trapos
o bairro de lata seus ligeiros telhados
O dilúvio é para este ano
A nado a fuga no corpo
A nado o relâmpago no coração
As girafas são menos apressadas

III

De cada semente de obsessão
a palavra emerge impaciente
como uma arma incompreendida


§


História de Olhos 


I

Os falcões assombram o reino
de João Pestana**
Suas garras fixadas nas pálpebras

II

Ao preço do ouro de novos compromissos
lutando com cada trança de luz
a corda ao pescoço
o carrasco como refém

III

Ao longo das docas de éter
as pessoas acenam com a cabeça
Lajes com graffitis e signos
a âncora no fundo das águas
invejosa memória
O sal conserva a despedida

IV

Crepúsculo

espartilho de reivindicações hostis
Aurora
Paleta de esmalte da renúncia
a mulher nua
desliza
pelo olhar transparente do pintor

V

A morte para noiva

com luvas de missal
e azevinho na cintura

VI


Seus grandes poros dados à luz
Besta de pêlo amarelo acossada
a aldeia uiva ao lobo

VII

Belo caçador com andas

VIII

Para a procissão de cinzas pitorescas
para o soluço das trepadeiras das nações
para o balançar com bochechas ameaçadoras
a terra cospe o seu velho chumbo.

.
* in "Le Seuil, Les Sables", pp. 183-188, Gallimard, 1990
   versão muito livre de amadeu liberto fraga

** Este trecho fala de vendedores de areia e pós, no que aparenta ser uma remissão para um velho conto popular em que esse vendedor, um mago, asperge uma espécie de areia sobre os olhos das crianças que dormem para lhes influenciar os sonhos: os bem comportados teriam bons sonhos, os mal comportados teriam, já se vê, maus sonhos. Ao longo dos tempos este relato foi sofrendo variações mas o essencial manteve-se. Consciente ou inconscientemente, Hubert Reeves participou neste mito popular quando afirmou: "Somos todos feitos de pó de estrelas". No mundo anglo-saxónico este conto daria origem a Sandman, e por cá a João Pestana. Vi-me assim obrigado a abdicar de muita da poeticidade contida naqueles versos para tornar evidente ao leitor que aquele poema remete para o mundo dos sonhos. Infelizmente perde-se ali - além da figura do vendedor de pós - o termo areia (sable) que partilha com seuil (limite) o título dado à poesia completa pelo autor, que remete para a ideia de algo mágico que atravessa o limiar da nossa porta e invade a nossa intimidade - o sonho, a criação, a poesia portanto. Que tenha, pelo menos, prevalecido o carácter onírico da passagem.

20/12/2018

Inventário Incompleto

Há uma janela aberta sobre as fráguas.
Há um olhar descendo em cascata até ao vale.
Um barco largando o ancoradouro
e, ignorando meu poente,
lá vai subindo o Douro
como este nada querer rumo à nascente.

Há o inquebrantável poder da memória,
uma liturgia com travos de recomeço
a serpentear a evidência do fim.
E há uma ara entre a janela
e a melancolia da casa,
uma ara onde os sacrifícios atenuam
esta evidência que não se consegue dizer.

Há, no final da página, um ponto,
um ponto infinito como ditame
de qualquer deus que se oculta e diz.
E há também o grasnar dos gansos,
o sol a dar de chapa no vinhedo,
o rodar dos carros no asfalto...
Mas o que não há (nem nunca
poderá haver!) é a morte
desta qualquer coisa que não tem nome.


Victor Oliveira Mateus, in "Aquilo Que Não Tem Nome"



03/12/2018

Joaquim Manuel Magalhães acaba de divulgar "Para Comigo", obra que reúne, em versão definitiva, o que o poeta considera ser o epítome da sua obra, a poesia a que pretendia chegar. Aqui encontram-se uma versão modificada, melhorada, de "Um Toldo Vermelho", bem como o livro "Galopam", que até agora fora somente distribuído entre amigos. Onde outrora se lia "aproximar o real", ler-se-á doravante: * Apenas o real. Diferendo. Árduo impacto. Drenam o visível. Atípico e controverso zarcão. Superfície e miragem, passaporte, coturno.




27/11/2018

            o primeiro contacto que tive com a obra de Bertolucci (1941-2018) foi o seu 1900, filme que de certo modo fecha o período neo-realista da sua filmografia. nunca mais consegui apagar da memória a cena em que Atilla, o fascista interpretado por Donald Sutherland, mata uma criança aterrorizada, numa espécie de acidente procurado, sem remorso, partindo-lhe a cabeça de encontro a uma coluna. até hoje esta cena persegue-me bem mais do que salós e sucedâneos. 
            seguiu-se Último Tango..., que não me impressionou absolutamente nada, e La Luna, já de 1979, que inaugura o Bertolucci que mais me interessa. sempre vi este filme como uma tentativa de trazer a tragédia grega para os nossos dias, projecto que me parece conseguido e continuado nos dois últimos filmes: The Dreamers e Me and You (embora neste último se sentisse alguma bonomia porventura escolhida por ser a despedida), ao mesmo tempo mostrando os sonhos falhados de uma certa geração, quer pela big picture do maio de '68, por ex., quer pela falência da instituição família. 
            posso também falar de filmes em que o espaço – natural ou aquele erguido pela mão humana – tem um papel preponderante: é por esta lente que escolho apreciar filmes tantas vezes criticados pejorativamente, como The Sheltering Sky (muito distante do livro que o originou, é certo), Little Buddha, ou Besieged, em que a vida interior das personagens e a paisagem exterior se relacionam - por analogia ou por contraste. 
            mas se tivesse de escolher um filme para apresentar o realizador a quem nada dele conheça, decidir-me-ia por The Conformist, de 1970. neste filme, bem como em The Spider's Stratagem (este baseado num conto de Borges), temos a big e a small picture – o fascismo e a disfuncionalidade familiar – tudo a partir da ideia de conformismo, de um quotidiano falsamente asséptico, num cocktail que junta espionagem, drama, intervenção, fazendo-nos questionar o que é afinal a normalidade, ou se tal conceito é sequer válido. 
            também se pode já ver ali o cuidado com o espaço, com o modo como este pode ser filmado para transmitir uma determinada mensagem – seja a luz, seja a aproximação da câmara, por vezes a lembrar Godard – quer nos interiores, quer nos exteriores. escolho-o porque é urgente revê-lo, perceber porque nos interpela, porque nos faz pensar no passado, no presente e no futuro, como se as coisas não tivessem mudado assim tanto (será que mudaram?). escolho-o porque é um filme que nos pede agitação, revolta, revolução.


amadeu liberto fraga

11/11/2018

a propósito dos 100 anos do armistício e das inúmeras publicações surgidas nos últimos dias lembrando o contingente português, ocorreu-me a obra "A Malta das Trincheiras", do mal-amado André Brun. no excerto que abaixo reproduzo, retirado da edição da Civilização, nos anos 80, Brun presenteia-nos com um xapirógrafo. não sei como resolveu a Guerra e Paz este berbicacho, na sua reedição: vou supor que manteve o termo redigido por Brun. para muitos, esta palavra tem aqui a sua única aparição em toda a história da língua portuguesa. para uns gralha, para outros um curioso hápax, certo é que parece não haver uma explicação definitiva para aquele lexema. eu não creio que se trate de gralha, mas de um aportuguesamento de "spirographe", o aparelho que Bruno Abakanowicz inventou entre 1881 e 1900, mais tarde desenvolvido por Theodore Brown, e que Brun poderá ter escutado pela boca de um soldado de outra nacionalidade. no contexto da obra de Brun, pode querer dizer que o sargento colocava os de patentes abaixo da sua a desempenhar tarefas que os faziam sentir-se às voltas no mesmo sítio, descrevendo círculos, sem alcançar grandes feitos. tácticas floreadas, portanto, mas com pouca eficácia. esta é a minha interpretação, uma vez que o "spirographe" - ou chamemos-lhe de uma vez xapirógrafo ou espirógrafo - servia para calcular áreas delimitadas por linhas curvas, ou, no caso do aparelho de Brown, para criar uma sequência de imagens através da rotação de um disco. claro que posso estar errado. segue abaixo o excerto da obra em que Brun parece não ser muito simpático para com os soldados portugueses, mas na verdade queria apenas deixar registado o quão mal preparados estavam, por comparação com os aliados, assim como dois links com mais informação sobre o espirógrafo de Brown e sucessores.

🔻

     "Longe de mim a ideia de amesquinhar o esforço dos primeiros combatentes em França; mas, durante muito tempo, a permanência numa guerra de trincheiras, em sectores relativamente calmos de que certa nervosidade destrambelhada vinda do alto pretendia fazer sem método sectores de verdadeiro combate, não permitiu que se pusessem à prova senão a capacidade de adaptação que distingue a nossa raça, sempre através dos séculos a abandonada de alguém, e aquelas qualidades passivas de resignação que a História reconhece ao soldado português. Dos dias terríveis de Abril até aos do alvorecer de Agosto, em que me separei da frente portuguesa, só o esforço individual de certos manteve a continuidade do esforço anterior, reduzida ainda ao trabalho obscuro da malta das trincheiras.

      Acompanhei de perto essa arraia-miúda para a não amar e não a estimar. Foi com ela que ganhei os meus primeiros galões bem ganhos. Sei o que ela vale, o que ela fez e o que ela podia ter feito no instante próprio, se os chefes combatentes, verificando que ao começo as suas funções tácticas eram, pela natureza especial da guerra que se estava fazendo, reduzidas à versão e reprodução de ordens anteriores, e portanto redutíveis a proporções para as quais chegava e sobejava a mentalidade de um sargento-ajudante munido de um xapirógrafo, tivessem melhor atentado na importância das suas funções humanas e cuidado com maior carinho e mais inteligente desvelo do moral de tropas já de si ignorantes e propensas à estagnação de espírito e fatalismo atávico e, para mais, atiradas para longe da terra onde tinham as razões lógicas do seu ser."





05/11/2018

No próximo sábado, 10 de Novembro de 2018, pelas 16 horas, Graça Pires apresenta a obra de Victor Oliveira Mateus; Victor Oliveira Mateus apresenta a obra de Graça Pires. Duas obras editadas pela Coisas de Ler na colecção de poesia Clepsydra. Será na livraria Ferin, no nº 70 da Rua Nova do Almada, Lisboa.

https://www.facebook.com/events/342136329690404/


24/08/2018

Relatório

Vamos fazendo o melhor uso possível 
dos dedos com que se queimam os fogos de artifício,
da tinta azul de pintar os carrosséis,
das palavras amargas na boca dos poetas.

Numa gaveta guardamos 
os nomes dos afogados
e sob um canteiro de jardim
as ferramentas do ódio.

Já queimamos todo o papel de carta.

E enquanto as crianças continuam 
a dançar nuas sobre a praia,
a rádio já só transmite os gritos dos abutres
e os polícias refugiaram-se nos olhos dos estudantes.

As espingardas, petrificadas, 
ainda servem para povoar os lagos.

José Manuel Simões, in "Sobras Completas"



12/08/2018

SINALIZAÇÃO OSSIFICADA A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome e deixou que ele falasse gota a gota: «– O sexo-limbo é um composto sobrevivente... etc., etc.» Daí tirei conclusões que tudo me permitem: – A borracha-centopeia furada ao lado pela parede-telefone a invenção dum novo dialecto para falar às formigas a auto-fixação de um purificador nos buracos do vento uma complicação perfeita para objectificada em gesso morder o cio na boca... etc., etc. António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"

29/07/2018

Fingem, as palavras: uma casa é uma casa, um medronheiro é um medronheiro, uma montanha é uma montanha, uma rosa é uma rosa. Esta neutralidade apazigua: é um quarto de hotel: entra-se nele como se se acabasse de nascer. Tudo é estável. Não há sequer a ameaça de uma recordação nem a imprevisibilidade do futuro: estamos num presente sólido: a janela dá para o parque, os pombos voam pela primeira vez, as crianças chamam pela primeira vez, o homem de fato de treino corre pela primeira vez. Como num filme, tudo se põe em movimento à voz do realizador: acção.
:
A escrita destrói a inocência do medo. Fica a suspeita, essa transversal que modela uma faca
Rui Nunes, in "A Margem de Um Livro"





19/07/2018

67. Olhem para o vosso quarto, à noite, quando já dificilmente se distinguem as cores – e agora acendam a luz e pintem o que viram antes, na semiobscuridade. – Como comparam as cores tal como estão na pintura com as do quarto semiobscurecido?
Ludwig Wittgenstein, in "Anotações Sobre as Cores"

27/06/2018

Impossível

Que bom seria que a vontade imperasse.
Ou que a fina pele do teu rosto
obedecesse apenas.
Ou, como dois irmãos, duas crianças
andássemos pelo mundo sós.
Ou que a sorte, o silêncio, a distância de tudo
mais nos unisse.
Que bom seria que acordássemos juntos.
E que no cristal e no azul dos teus olhos
eu me visse.
Que o teu riso - riso humano! - despontasse a Alegria
no meu e em todos
os corações.
Que tivéssemos pressa
de chegar a casa - uma casa à nossa espera
para nos fazer felizes.
Que bom seria que fôssemos felizes!
Que nada no teu rosto transparecesse
desconfiança.
E que a transparência, em suma, e definitivamente
se implantasse - gloriosa - na nossa vida inteira.
Impossível.

3 de Janeiro de 1976

Raul de Carvalho, in "Desejaria Provar Que Esquecera a Ponto de Já Nem se Lembrar de Ter Tido Qualquer Coisa Para Esquecer"

Autor desconhecido

06/06/2018

     Albano Martins deixou-nos hoje. 

    recordo a sua presença discretíssima sempre que ia à livraria em que trabalhei longos anos, em gaia, para encomendar a colóquio-letras ou outras revistas entretanto extintas. lembro-me de tantas e tantas vezes ter dito para mim mesmo que havia de lhe pedir que me assinasse o "As Escarpas do Dia", mas ficava sempre para a próxima porque não queria importuná-lo. 

    recordo também uma aula de 'estética e filosofia da linguagem', no meu último ano de licenciatura, cadeira opcional ministrada pela professora dra. Maria Luísa Malato, dada quase na íntegra a partir de um poema de Albano Martins. lembro-me do estremecimento e da vergonha que senti, misturados com sentido de responsabilidade, quando, em 2016, e a convite de Victor Oliveira Mateus, publiquei um poema na revista 'Cintilações', onde constava, entre outros, um poema de Albano Martins. 

    este homem deixa-nos uma obra lírica rigorosíssima, pulso implacavelmente seguro desde o primeiro verso, capaz de ombrear sem pedantismo com os gregos antigos ou com alguns nomes da geração de '27. foi, e digo-o sem quaisquer termos comparativos, o único poeta português capaz de se inserir na mesma linhagem de poetas a que pertencia Eugénio, sem ser epígono de ninguém. deixa-nos ainda uma "Antologia de Poesia Grega Clássica", devedora de duas traduções francesas de referência, uma pessoalíssima antologia designada "Três Momentos da Poesia Europeia", a premiada tradução de "Canto Geral", de Pablo Neruda e "Poemas do Desterro", de Ovídio, além de alguns livros infantis. 

    nestes tempos que fingimos viver é cada vez mais raro ter acesso a vozes como a de Albano Martins, quando a narrativa poética vigente, e à laia de oficial, é cada vez mais a de uma poesia pop tipo pastilha elástica disparada por grandes grupos com autores consagrados no facebook e nas colunas de jornais amigas do amigo. aos leitores de poesia aviso: é importante lê-lo, relê-lo, tirar lições, ou pelo menos notas. se o não fizeram...


Um dos Capítulos
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.



27/05/2018


    (pensei muito, antes de escrever e publicar isto. não pretendo substituir-me a tratados de bioética, é apenas o que penso acerca desta matéria. opinião, portanto. sintam-se à vontade para comentar, mas já não participo em debates. grato, desde já, pela vossa leitura e compreensão.)


    eu defendo a eutanásia. este enunciado: "eu defendo a eutanásia.", pede alguma análise de todos nós. na larga maioria das ocasiões, quando escuto alguém falar sobre eutanásia, o seu argumentário acaba por centrar-se no individualismo: a minha vida, a minha decisão. porém, a eutanásia não é sinónimo de comprar uma arma e dar um tiro na têmpora. por isso prefiro hoje falar de despenalização da morte assistida. aquilo que estou a tentar dizer é isto: para que alguém possa decidir pôr termo à sua vida, essa possibilidade tem de ser facultada, i.e., os meios humanos e logísticos para a prossecução de tal acto não aparecem aos olhos do paciente ab nihilo. não podemos, contudo, cair em alarmismos: ninguém andará por aí com uma agulha no bolso a "eutanasiar" velhinhos, tão-pouco a desleixar cuidados paliativos ou a recusar cirurgias apenas por ser mais fácil e económica uma "morte limpa" (alguma morte é limpa?). 

    também vos digo - quem já teve, por exemplo, um familiar doente oncológico saberá do que falo - como é fácil fazer circular substâncias num hospital, com ou sem consentimento médico: os enfermeiros não poupam na morfina, quando se deparam com um paciente em sofrimento atroz, e, mesmo com notas de poupança da administração, mesmo sem o aval médico, saem e entram de alas inúmeras vezes trazendo no bolso doses lenitivas que administram, não como anjos exterminadores, mas como gente com um pouco de coração, apesar da necessária frieza e distanciamento a que a sua profissão obriga para que se não tornem maus profissionais. portanto, despenalizar ou legalizar uma morte assistida não irá mudar absolutamente nada - continuarão a morrer velhos em lares pagos pelas famílias, quando durante a noite perdem a capacidade de engolir a própria saliva, assim como tantos jovens cuja sorte dita que partam antes dos pais. 

    parece-me apenas que deverá existir um enquadramento legal para que: 1) seja feita uma avaliação independente a cada caso, analisando o estado psíquico e clínico de cada paciente; 2) exista, o quanto antes, formação e apoio para o pessoal médico e/ou familiares que, no futuro, venham a ter um papel preponderante na preparação e no momento da morte assistida do paciente. se isto não é claro, estamos ainda longe de ser gente civilizada. isto não tem qualquer relação com religião, pelo que os líderes religiosos bem podem unir-se para o não. isto não tem qualquer relação com governos de esquerda, direita, centro, ou quaisquer outros. não defendo alguma forma distorcida de nazismo clínico, apenas um fim condigno para aqueles que, perante uma existência de dor apenas, e sem alternativas, possam, conscientemente, decidir pôr termo a um mal crónico que lhes diminua a humanidade. 

    quando já não temos como cerzir o tecido da nossa existência, quando já nem retalhos somos, prolongar o sofrimento alheio é um acto de profundo egoísmo: muitas vezes sentimos a culpa de não termos dado o suficiente de nós aos outros e, por isso, na recta final, confiamos na medicina para prolongar o rio do tempo dos outros. mas por conta dessa culpa judaico-cristã não pode valer tudo. não pode valer sobretudo a hipocrisia. como um rio, a vida. nada detém a água, nada. e um dia, como quando o rio, na foz, encontra o mar, morremos mas não desaparecemos: tornamo-nos parte de algo maior.

amadeu liberto fraga

07/05/2018

Tenho pena, ah como eu tenho pena!... dos que precisam de inventar coragem para um novo dia, certezas certezinhas, obediência a religião ou partido ou rotinas, de inventar-se comodidades necessidades ou ilusórias vaidades de levar melhor vidinha (ceguetas todos eles aos limites da humana criatura que é para todos e de repente o coveiro), razões para estar e lutar além destas, tão simples afinal e misteriosas sempre, tão naturais e primitivas: uma rapariga nossa que amamenta o filho, duas crianças que pedem pão e olham para ti.
Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente variada nesta Viagem. Pobre gente: estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do próprio talento desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentando arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por impotência de criar, lazeira ou cobardia (mas o coveiro nada perdoa). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados. Uma caca a respirar.
Ora deixem-me que lhes diga: um cadáver não nunca tem terá razão, mesmo que a tivesse tido antes. Um estúpido um cobardola é para rir e chorar, porque a estupidez e o medo não têm medida. Um patareco, dá-se-lhe um pontapé no cu, um parasita esborracha-se por nojo e a um folião fazemos notar que não lhe achamos graça nenhuma. E fugi dos frustrados e falhados que é a malta mais tratante e castradora que existe. Mas um bebé! uma rapariga com o filho ao colo! os bambinos em volta! são os bichos mais exigentes e precisados de tudo. E há que lhes dar tudo. Eis, Senhores, porque saúdo a manhã e faço gosto em a ver inda uma vez, eis porque a pardalada me incita. E no riso do meu Paulocas uma leve ironia contente me desperta, babada em leite e ternura. Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bemaventurados somos e vós, também, SE SABEIS ESTAS COISAS, BEM-AVENTURADOS SEREIS, SE AS PRATICARDES."

Luiz Pacheco, in "Comunidade"




04/05/2018

APRENDER OU NÃO (EXCERTO)

     Por acaso, lembro-me como aprendi essas coisas do «masculino-feminino» com uma criança de oito anos, à volta com a 2.ª classe. Vagabundeávamos os dois pelos cais. Não era nada inesperado haver barcos por ali. Havia muitos. Estava eu a ver que era assim quando o meu companheiro me coloca este embaraço: «Porque é que os barcos, que são masculinos, têm nomes femininos?» Decifrei o nome de alguns barcos: «Maria Rita, «Ana Mafalda», «Nossa Mãe», «Bambolina». Dei uma resposta idiota porque realmente não compreendia aquela desatenção denominadora: «É que os donos dos barcos são parvos.» Ele sorriu, irónico: «Não. É que não são barcos. São barcas.» E, dentro de mim, tudo se reorganizou, e o mundo - com seus barcos (ou barcas) e nomes - recuperou o abalado sentido.

Herberto Helder, in "em minúsculas"