27/05/2018


    (pensei muito, antes de escrever e publicar isto. não pretendo substituir-me a tratados de bioética, é apenas o que penso acerca desta matéria. opinião, portanto. sintam-se à vontade para comentar, mas já não participo em debates. grato, desde já, pela vossa leitura e compreensão.)


    eu defendo a eutanásia. este enunciado: "eu defendo a eutanásia.", pede alguma análise de todos nós. na larga maioria das ocasiões, quando escuto alguém falar sobre eutanásia, o seu argumentário acaba por centrar-se no individualismo: a minha vida, a minha decisão. porém, a eutanásia não é sinónimo de comprar uma arma e dar um tiro na têmpora. por isso prefiro hoje falar de despenalização da morte assistida. aquilo que estou a tentar dizer é isto: para que alguém possa decidir pôr termo à sua vida, essa possibilidade tem de ser facultada, i.e., os meios humanos e logísticos para a prossecução de tal acto não aparecem aos olhos do paciente ab nihilo. não podemos, contudo, cair em alarmismos: ninguém andará por aí com uma agulha no bolso a "eutanasiar" velhinhos, tão-pouco a desleixar cuidados paliativos ou a recusar cirurgias apenas por ser mais fácil e económica uma "morte limpa" (alguma morte é limpa?). 

    também vos digo - quem já teve, por exemplo, um familiar doente oncológico saberá do que falo - como é fácil fazer circular substâncias num hospital, com ou sem consentimento médico: os enfermeiros não poupam na morfina, quando se deparam com um paciente em sofrimento atroz, e, mesmo com notas de poupança da administração, mesmo sem o aval médico, saem e entram de alas inúmeras vezes trazendo no bolso doses lenitivas que administram, não como anjos exterminadores, mas como gente com um pouco de coração, apesar da necessária frieza e distanciamento a que a sua profissão obriga para que se não tornem maus profissionais. portanto, despenalizar ou legalizar uma morte assistida não irá mudar absolutamente nada - continuarão a morrer velhos em lares pagos pelas famílias, quando durante a noite perdem a capacidade de engolir a própria saliva, assim como tantos jovens cuja sorte dita que partam antes dos pais. 

    parece-me apenas que deverá existir um enquadramento legal para que: 1) seja feita uma avaliação independente a cada caso, analisando o estado psíquico e clínico de cada paciente; 2) exista, o quanto antes, formação e apoio para o pessoal médico e/ou familiares que, no futuro, venham a ter um papel preponderante na preparação e no momento da morte assistida do paciente. se isto não é claro, estamos ainda longe de ser gente civilizada. isto não tem qualquer relação com religião, pelo que os líderes religiosos bem podem unir-se para o não. isto não tem qualquer relação com governos de esquerda, direita, centro, ou quaisquer outros. não defendo alguma forma distorcida de nazismo clínico, apenas um fim condigno para aqueles que, perante uma existência de dor apenas, e sem alternativas, possam, conscientemente, decidir pôr termo a um mal crónico que lhes diminua a humanidade. 

    quando já não temos como cerzir o tecido da nossa existência, quando já nem retalhos somos, prolongar o sofrimento alheio é um acto de profundo egoísmo: muitas vezes sentimos a culpa de não termos dado o suficiente de nós aos outros e, por isso, na recta final, confiamos na medicina para prolongar o rio do tempo dos outros. mas por conta dessa culpa judaico-cristã não pode valer tudo. não pode valer sobretudo a hipocrisia. como um rio, a vida. nada detém a água, nada. e um dia, como quando o rio, na foz, encontra o mar, morremos mas não desaparecemos: tornamo-nos parte de algo maior.

amadeu liberto fraga

07/05/2018

Tenho pena, ah como eu tenho pena!... dos que precisam de inventar coragem para um novo dia, certezas certezinhas, obediência a religião ou partido ou rotinas, de inventar-se comodidades necessidades ou ilusórias vaidades de levar melhor vidinha (ceguetas todos eles aos limites da humana criatura que é para todos e de repente o coveiro), razões para estar e lutar além destas, tão simples afinal e misteriosas sempre, tão naturais e primitivas: uma rapariga nossa que amamenta o filho, duas crianças que pedem pão e olham para ti.
Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente variada nesta Viagem. Pobre gente: estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do próprio talento desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentando arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por impotência de criar, lazeira ou cobardia (mas o coveiro nada perdoa). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados. Uma caca a respirar.
Ora deixem-me que lhes diga: um cadáver não nunca tem terá razão, mesmo que a tivesse tido antes. Um estúpido um cobardola é para rir e chorar, porque a estupidez e o medo não têm medida. Um patareco, dá-se-lhe um pontapé no cu, um parasita esborracha-se por nojo e a um folião fazemos notar que não lhe achamos graça nenhuma. E fugi dos frustrados e falhados que é a malta mais tratante e castradora que existe. Mas um bebé! uma rapariga com o filho ao colo! os bambinos em volta! são os bichos mais exigentes e precisados de tudo. E há que lhes dar tudo. Eis, Senhores, porque saúdo a manhã e faço gosto em a ver inda uma vez, eis porque a pardalada me incita. E no riso do meu Paulocas uma leve ironia contente me desperta, babada em leite e ternura. Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bemaventurados somos e vós, também, SE SABEIS ESTAS COISAS, BEM-AVENTURADOS SEREIS, SE AS PRATICARDES."

Luiz Pacheco, in "Comunidade"




04/05/2018

APRENDER OU NÃO (EXCERTO)

     Por acaso, lembro-me como aprendi essas coisas do «masculino-feminino» com uma criança de oito anos, à volta com a 2.ª classe. Vagabundeávamos os dois pelos cais. Não era nada inesperado haver barcos por ali. Havia muitos. Estava eu a ver que era assim quando o meu companheiro me coloca este embaraço: «Porque é que os barcos, que são masculinos, têm nomes femininos?» Decifrei o nome de alguns barcos: «Maria Rita, «Ana Mafalda», «Nossa Mãe», «Bambolina». Dei uma resposta idiota porque realmente não compreendia aquela desatenção denominadora: «É que os donos dos barcos são parvos.» Ele sorriu, irónico: «Não. É que não são barcos. São barcas.» E, dentro de mim, tudo se reorganizou, e o mundo - com seus barcos (ou barcas) e nomes - recuperou o abalado sentido.

Herberto Helder, in "em minúsculas"