27/06/2018

Impossível

Que bom seria que a vontade imperasse.
Ou que a fina pele do teu rosto
obedecesse apenas.
Ou, como dois irmãos, duas crianças
andássemos pelo mundo sós.
Ou que a sorte, o silêncio, a distância de tudo
mais nos unisse.
Que bom seria que acordássemos juntos.
E que no cristal e no azul dos teus olhos
eu me visse.
Que o teu riso - riso humano! - despontasse a Alegria
no meu e em todos
os corações.
Que tivéssemos pressa
de chegar a casa - uma casa à nossa espera
para nos fazer felizes.
Que bom seria que fôssemos felizes!
Que nada no teu rosto transparecesse
desconfiança.
E que a transparência, em suma, e definitivamente
se implantasse - gloriosa - na nossa vida inteira.
Impossível.

3 de Janeiro de 1976

Raul de Carvalho, in "Desejaria Provar Que Esquecera a Ponto de Já Nem se Lembrar de Ter Tido Qualquer Coisa Para Esquecer"

Autor desconhecido

06/06/2018

     Albano Martins deixou-nos hoje. 

    recordo a sua presença discretíssima sempre que ia à livraria em que trabalhei longos anos, em gaia, para encomendar a colóquio-letras ou outras revistas entretanto extintas. lembro-me de tantas e tantas vezes ter dito para mim mesmo que havia de lhe pedir que me assinasse o "As Escarpas do Dia", mas ficava sempre para a próxima porque não queria importuná-lo. 

    recordo também uma aula de 'estética e filosofia da linguagem', no meu último ano de licenciatura, cadeira opcional ministrada pela professora dra. Maria Luísa Malato, dada quase na íntegra a partir de um poema de Albano Martins. lembro-me do estremecimento e da vergonha que senti, misturados com sentido de responsabilidade, quando, em 2016, e a convite de Victor Oliveira Mateus, publiquei um poema na revista 'Cintilações', onde constava, entre outros, um poema de Albano Martins. 

    este homem deixa-nos uma obra lírica rigorosíssima, pulso implacavelmente seguro desde o primeiro verso, capaz de ombrear sem pedantismo com os gregos antigos ou com alguns nomes da geração de '27. foi, e digo-o sem quaisquer termos comparativos, o único poeta português capaz de se inserir na mesma linhagem de poetas a que pertencia Eugénio, sem ser epígono de ninguém. deixa-nos ainda uma "Antologia de Poesia Grega Clássica", devedora de duas traduções francesas de referência, uma pessoalíssima antologia designada "Três Momentos da Poesia Europeia", a premiada tradução de "Canto Geral", de Pablo Neruda e "Poemas do Desterro", de Ovídio, além de alguns livros infantis. 

    nestes tempos que fingimos viver é cada vez mais raro ter acesso a vozes como a de Albano Martins, quando a narrativa poética vigente, e à laia de oficial, é cada vez mais a de uma poesia pop tipo pastilha elástica disparada por grandes grupos com autores consagrados no facebook e nas colunas de jornais amigas do amigo. aos leitores de poesia aviso: é importante lê-lo, relê-lo, tirar lições, ou pelo menos notas. se o não fizeram...


Um dos Capítulos
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.