27/11/2018

            o primeiro contacto que tive com a obra de Bertolucci (1941-2018) foi o seu 1900, filme que de certo modo fecha o período neo-realista da sua filmografia. nunca mais consegui apagar da memória a cena em que Atilla, o fascista interpretado por Donald Sutherland, mata uma criança aterrorizada, numa espécie de acidente procurado, sem remorso, partindo-lhe a cabeça de encontro a uma coluna. até hoje esta cena persegue-me bem mais do que salós e sucedâneos. 
            seguiu-se Último Tango..., que não me impressionou absolutamente nada, e La Luna, já de 1979, que inaugura o Bertolucci que mais me interessa. sempre vi este filme como uma tentativa de trazer a tragédia grega para os nossos dias, projecto que me parece conseguido e continuado nos dois últimos filmes: The Dreamers e Me and You (embora neste último se sentisse alguma bonomia porventura escolhida por ser a despedida), ao mesmo tempo mostrando os sonhos falhados de uma certa geração, quer pela big picture do maio de '68, por ex., quer pela falência da instituição família. 
            posso também falar de filmes em que o espaço – natural ou aquele erguido pela mão humana – tem um papel preponderante: é por esta lente que escolho apreciar filmes tantas vezes criticados pejorativamente, como The Sheltering Sky (muito distante do livro que o originou, é certo), Little Buddha, ou Besieged, em que a vida interior das personagens e a paisagem exterior se relacionam - por analogia ou por contraste. 
            mas se tivesse de escolher um filme para apresentar o realizador a quem nada dele conheça, decidir-me-ia por The Conformist, de 1970. neste filme, bem como em The Spider's Stratagem (este baseado num conto de Borges), temos a big e a small picture – o fascismo e a disfuncionalidade familiar – tudo a partir da ideia de conformismo, de um quotidiano falsamente asséptico, num cocktail que junta espionagem, drama, intervenção, fazendo-nos questionar o que é afinal a normalidade, ou se tal conceito é sequer válido. 
            também se pode já ver ali o cuidado com o espaço, com o modo como este pode ser filmado para transmitir uma determinada mensagem – seja a luz, seja a aproximação da câmara, por vezes a lembrar Godard – quer nos interiores, quer nos exteriores. escolho-o porque é urgente revê-lo, perceber porque nos interpela, porque nos faz pensar no passado, no presente e no futuro, como se as coisas não tivessem mudado assim tanto (será que mudaram?). escolho-o porque é um filme que nos pede agitação, revolta, revolução.


amadeu liberto fraga

11/11/2018

a propósito dos 100 anos do armistício e das inúmeras publicações surgidas nos últimos dias lembrando o contingente português, ocorreu-me a obra "A Malta das Trincheiras", do mal-amado André Brun. no excerto que abaixo reproduzo, retirado da edição da Civilização, nos anos 80, Brun presenteia-nos com um xapirógrafo. não sei como resolveu a Guerra e Paz este berbicacho, na sua reedição: vou supor que manteve o termo redigido por Brun. para muitos, esta palavra tem aqui a sua única aparição em toda a história da língua portuguesa. para uns gralha, para outros um curioso hápax, certo é que parece não haver uma explicação definitiva para aquele lexema. eu não creio que se trate de gralha, mas de um aportuguesamento de "spirographe", o aparelho que Bruno Abakanowicz inventou entre 1881 e 1900, mais tarde desenvolvido por Theodore Brown, e que Brun poderá ter escutado pela boca de um soldado de outra nacionalidade. no contexto da obra de Brun, pode querer dizer que o sargento colocava os de patentes abaixo da sua a desempenhar tarefas que os faziam sentir-se às voltas no mesmo sítio, descrevendo círculos, sem alcançar grandes feitos. tácticas floreadas, portanto, mas com pouca eficácia. esta é a minha interpretação, uma vez que o "spirographe" - ou chamemos-lhe de uma vez xapirógrafo ou espirógrafo - servia para calcular áreas delimitadas por linhas curvas, ou, no caso do aparelho de Brown, para criar uma sequência de imagens através da rotação de um disco. claro que posso estar errado. segue abaixo o excerto da obra em que Brun parece não ser muito simpático para com os soldados portugueses, mas na verdade queria apenas deixar registado o quão mal preparados estavam, por comparação com os aliados, assim como dois links com mais informação sobre o espirógrafo de Brown e sucessores.

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     "Longe de mim a ideia de amesquinhar o esforço dos primeiros combatentes em França; mas, durante muito tempo, a permanência numa guerra de trincheiras, em sectores relativamente calmos de que certa nervosidade destrambelhada vinda do alto pretendia fazer sem método sectores de verdadeiro combate, não permitiu que se pusessem à prova senão a capacidade de adaptação que distingue a nossa raça, sempre através dos séculos a abandonada de alguém, e aquelas qualidades passivas de resignação que a História reconhece ao soldado português. Dos dias terríveis de Abril até aos do alvorecer de Agosto, em que me separei da frente portuguesa, só o esforço individual de certos manteve a continuidade do esforço anterior, reduzida ainda ao trabalho obscuro da malta das trincheiras.

      Acompanhei de perto essa arraia-miúda para a não amar e não a estimar. Foi com ela que ganhei os meus primeiros galões bem ganhos. Sei o que ela vale, o que ela fez e o que ela podia ter feito no instante próprio, se os chefes combatentes, verificando que ao começo as suas funções tácticas eram, pela natureza especial da guerra que se estava fazendo, reduzidas à versão e reprodução de ordens anteriores, e portanto redutíveis a proporções para as quais chegava e sobejava a mentalidade de um sargento-ajudante munido de um xapirógrafo, tivessem melhor atentado na importância das suas funções humanas e cuidado com maior carinho e mais inteligente desvelo do moral de tropas já de si ignorantes e propensas à estagnação de espírito e fatalismo atávico e, para mais, atiradas para longe da terra onde tinham as razões lógicas do seu ser."





05/11/2018

No próximo sábado, 10 de Novembro de 2018, pelas 16 horas, Graça Pires apresenta a obra de Victor Oliveira Mateus; Victor Oliveira Mateus apresenta a obra de Graça Pires. Duas obras editadas pela Coisas de Ler na colecção de poesia Clepsydra. Será na livraria Ferin, no nº 70 da Rua Nova do Almada, Lisboa.

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