Seis Sonetos de Maria Lúcia Alvim ( 1932 - 2021 )
VI
Onde tempo que me date
E não me faça perder
Quando no tempo me afaste
Do que fui antes de ser
— Esta vida que me assiste
Nem me deixa transmigrar
Se perto Amor me consiste
Não me posso acrescentar;
Renasce antigo erro: cedo
Não distingo ser e medo
Ou vontade de parar.
A nada me posso dar
Estando presa a vontades
Que reúnam essas metades.
in "XX Sonetos", 1959
XIV
Quisera tanto que durasse
qualquer desejo em qualquer dia
que mesmo sendo em demasia
eu deles nunca me fartasse;
assim enquanto não houvesse
nada mais que vos sugerisse
então que a vida ressurgisse
e só desejos refizesse;
porque deixei vossa verdade
ó coisas já feitas de espera
quando sempre tudo soubera
tão cheio de realidade;
pois bem sei que ando consumida
mas por desejos que são vida.
in "XX Sonetos", 1959
AQUAVIA
Como a fonte que jorra, ambivalente,
marejados de sono, navegamos —
que esse rio de amor e de abandono
seja leito comum para quem morre.
Impelidos à margem da corrente
sacudimos a tarja temporária –
e a alma se evapora: tarlatana
sobre a nossa nudez contraditória.
Na umidade do riso, no desejo
impreciso e profuso, pelo pranto
que no calor das órbitas poreja,
Ah, transidos de frio, patinamos
entre quiosques, domos e coretos
sem nada surpreender ou consumar.
in "Romanceiro de Dona Beja", 1979
DANÇA DOS ESPÍRITOS BEATOS
A navalha. O Verbo. O movimento
O Menino de barba crespa e basta.
O Cavalo-Marinho (aquele passe
de nunca ser tomada de surpresa!)
Grávido de mim. Quem? Senão a Ti
faria? Onde o Mal, em tal sacrifício?
A tua cabeleira negra e casta.
Os meus cabelos tesos e metálicos.
Chamamos pelo nome esse pecado
Amor: — penetra fundo na palavra
e reboa no ar: Amaldiçoado!…
E quanto mais te ouço mais me encorpo
cerzida ao teu Corpo, que é meu corpo,
que não vejo, não cheiro, que não toco.
in "A rosa malvada", 1980
II. CANTIGA DE RODA
Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim
Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim
Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim
No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim
in "Batendo pasto", 1982 mas inédito até 2020
COLUNA
Era uma tarde frese, empelicada.
Eu vinha fria e fétida, mas vinha.
Não tinha resto meu, se tudo eu tinha
Não era nome ou rosto, de onde eu vinha.
Ele me viu da branca paliçada
E veio ao meu encontro, já que eu vinha
Na mesma direção, pois que não tinha
Nenhuma outra saída, de onde eu vinha.
Paramos sobre a ponte. Promulgada
Intimava os atalhos, mais não tinha.
Ele cercava o fogo até o cerne.
E fui ganhando brilho, por um nada.
Sem que nunca soubesse de onde vinha
A ressurgir no tempo em minha carne.
in "Batendo pasto", 1982 mas inédito até 2020
![]() |
Maria Lúcia Alvim por Sebastião Rocha Reis © |
Sem comentários:
Enviar um comentário