(tímpano e
pupila)
caminho, a alma aberta como uma
ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
ao longo da memória, onde se fundem
o
tímpano e a pupila.
Luís Miguel Nava
*
entrei na vida pelos pulmões,
dispensando a protocolar palmada e apresentando um suposto grito iniciático. remetendo
para aquele choro que nos muda efectivamente, poderei dizer que chorei pela
segunda vez quando o meu pai me comunicou o falecimento do meu avô paterno. os
meus pulmões tiveram que reaprender a vida: queria, mas não conseguia gritar.
para lá do amor incondicional aos netos, guardo do meu avô a vontade de viver, os jogos de rimas e o som dos seus dedos a percutir na máquina de escrever. a ele devo a aquisição de tanto vocabulário, assim como aquele amor impagável que hoje não se encontra em lugar algum. a minha talvez tenha sido a última geração a ter uma “educação sentimental”, no sentido mais literário da expressão.
aos vinte anos caminhava como quem acredita piamente que vai ao encontro das palavras. saía quase sem destino, na certeza de, ao regressar a casa, ter algo para escrever. e quase sempre isso acontecia. depois rasguei tudo e passei a escrever em cafés. acabei por escolher o storia na passos manuel. havia sempre música que eu nunca ouvira, ao fundo janelas com vista para prédios abandonados, muita juventude a consumir e a falar sobre a música: não acerca, mas acima de. recordo os tempos em que se podia fumar nos cafés: eram tempos melhores, hoje é tudo demasiado asséptico.
uma tarde, anotava umas linhas num bloco vermelho ridiculamente pequeno, e um homem na casa dos cinquenta dirigiu-se a mim: “veja aquilo. uma vergonha, não acha?” olhei na direcção que me apontava e vi duas belas jovens – uma morena e uma ruiva – a beijarem-se. respondi-lhe que uma vergonha era eu não estar no meio delas. vi-o afastar-se com cara de caso, como quem se sente estrangeirado. ri tão alto que elas interromperam a actividade e olharam para mim: voltei cobardemente à caneta no pulso e escrevi-lhes um poema que se perdeu com o bloco – era ridiculamente pequeno, o bloco.
o beijo, esse, de tão líquido, ficou até hoje nas minhas pupilas aguadas.
*
nestes dias que escorrem, a custo, por entre um défice que esgota a paciência de um país, mancando por entre uma classe política que pilha até o tutano aos velhos, lembro as muletas do meu avô e o esforço com que saía de casa para ir ver os amigos. da sua amizade nunca sobraram dúvidas. anos depois da sua morte, ao passear na foz, cruzava-me com pessoas que me abordavam para perguntar: “é o neto do liberto? sabe, eu era muito amigo do seu avô!” e havia ali uma honestidade tão limpa que me molhava os olhos e me fazia erguer a cabeça, a mim que andava sempre a olhar para o chão.
porque envelheci, chorei outras vezes. mas não importa referir o choro quando é já um cálculo nos rins da vida. à fase dos cafés seguiu-se a fase da foz: ia até às palmeiras para me sentir pouco digno, lembrava o eugénio e regressava a casa feliz por ser tão pequeno. passava na casa do brandão, batia a foz velha, a corguinha, todas aquelas ruas; depois nevogilde, a pérgula, o molhe. por esta altura andava com um caderno preto A4 que não metia na gabardine, como o Torga, só porque não a tinha. em vez disso, remetia-o para uma sacola à tiracolo que me entortou a coluna. aprendi a meter muita coisa para a sacola, e a coluna sempre a sofrer. um dia estava já tão desalinhado que quis gritar, mas faltou-me a prática. em vez disso, mudei a sacola de ombro e, com os anos, ao entortar a coluna para o outro lado, a coisa acabou por normalizar.
fui desaprendendo a escrita: as regras, os espartilhos, tudo caiu por terra. quanto mais leio, mais desaprendo. um dia pensei que tinha enlouquecido, mas fui salvo por uma menina que, no parque da cidade, me veio oferecer uma flor (talvez um dia me apeteça explicar isto, senão que se foda). a flor secou dentro do clepsidra, a marcar um poema do pessanha e eu fui secando caminhada após caminhada: perdi a minha avó para o alzheimer, perdi o meu padrinho para o cancro, o deus omnipotente de todas as doenças. perdi todas as palavras numa caminhada, uma tarde.
nunca mais fui o mesmo.
*
e não quero que deixe de doer.
o storia, entretanto, mudou de gerência e de nome. à foz, não vou tantas vezes quantas gostaria: o trabalho é sempre uma boa desculpa. caminhar, caminho de quando em vez, mas é com a vista cansada, como quem sabe ao que vai. deixei o amor algures lá atrás, na adolescência, para nunca mais acreditar. às vezes, fodo como escrevo: quando consigo, e cada vez mais torto. não por causa da coluna, por taras perdidas. entendo que, para os antigos, eros e thanatos fossem tão próximos. já não morro de amor, mas respeito muito a petite mort dos nossos amigos franceses, aquela branca insciência que nos mata e recupera para a insanidade dos dias.
temo que as leituras de estética me
estejam a tirar o gosto – da escrita, claro. quer dizer, ainda bebo os dias com
sofreguidão, mas com ganas de vazio. restam-me os meus actuais poetas, que bebo
como um hedge butler de vinte cinco
anos: se custa a engolir é porque está no ponto. abstenho-me de nomes, os
poetas são retornos da idade. creio que pára por aqui este texto: já fiz o
gosto aos agiotas da palavra que me pediam uma prosazinha. não sei como classificar
estas linhas, nem vou dormir a pensar nisso. não queria uma mulher para amar,
mas uma para caminhar. a idade está a mudar-me, há uns anos jamais escreveria
coisa assim. se tanto, diria que queria uma mulher. apenas isso. neste século
já tão árido, as pessoas já não sabem caminhar. andam, mas sempre a caminho de
algo. e a mim agrada-me tanto não saber para onde vou.
entre o tímpano e a pupila, tenho a
alma esquiva a pedir leituras que tardam, as desculpas a acumular-se. mas isto
não é como um gajo quer: para escrever, precisarei abrir feridas velhas ou
arranjar novas. nelas, como um idiota, espetar palavras como lâminas. o cabral
de melo neto entender-me-ia, talvez.
foto: uma rua algures na Foz do Douro |
amadeu liberto fraga
1 comentário:
Um novo dia, uma nova face do Alfraga. EStou a gostar
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