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(uma
rosa nunca foi uma rosa)
/ a caminho de casa escuto, sem querer, dois jovens estudantes
que discutem em torno da utilidade das flores. "dar flores já não se
usa", insiste um. "não sei se é bem assim", esgrime o outro,
"sabes que isso pode ajudar a chegar lá..." ficou-me tão gráfica a
ideia de "chegar lá" que me afastei um pouco e já só ouvi fragmentos
pelos quais percebi que um era estudante de filosofia e o outro de
antropologia. dir-se-ia que, entre a formação de um e outro, algo mais haveria
a dizer em torno das flores, mas enganei-me. talvez a idade tenha ali pesado
muito. /
/ fiquei paralisado com a rente assunção de que flores são para as mulheres. de que as mesmas têm de ser cultivadas e/ou arrancadas para que lhes seja atribuído um “uso”. parece-me evidente que existe para o mundo da botânica uma semiótica muito própria e espanta-me que nem um nem outro fosse capaz de pensar nisso. não só as flores têm um peso cultural – espécie e cores distintas terão distintos significados em distintas situações (o vermelho da paixão, o branco da eternidade, entre tantas outras significações mais ou menos codificadas, mais ou menos conseguidas) – como talvez o interesse aumente quando se leva alguém a ver flores, ao invés de as comprar ou arrancar. e o que dizer das flores nos funerais? que “papel” têm aí, ao cobrir de vida alguém que já não volta? e não serão flores mais cumpridas se não tiverem uso e existirem sem que olhos alguns as toquem? /
/ no dia 7 de fevereiro foi-me oferecida uma flor – uma rosa – para assinalar a apresentação do meu livro. nunca tal me tinha sucedido. foi, aliás, a minha primeira prenda de autor, para lá da presença de alguns dos que me lêem e, claro está, do apoio contínuo daqueles que insistem para que escreva. porém creio que me entenderão quando digo “a primeira prenda”. colocada a flor numa jarra com água, no meu quarto, o gesto que a anísia florista me endereçou manteve o viço durante quinze dias. /
/ foi, contudo, ao décimo sexto dia que comecei a reparar nela.
enobrecida pela escuridão, começou a curvar-se perante o tempo. salto a
metáfora e deixo bem lá atrás um piscar de olhos a Pessanha. esqueçamos o
significante no real por instantes e pensemos o que são as flores na
literatura: recordo uma aula em que um professor evidenciou que não existe um único (verdadeiro) poema em que apareçam flores,
que seja efectivamente sobre as mesmas. direi, então, concordando: uma flor
nunca foi apenas uma flor. quanto mais a pisares, mais ela florescerá. /
/ poderia ainda falar das “Flores do Mal” ou outras para as quais não estaria apto. fico-me por aqui: ainda bem que as flores já não se usam. /
(legenda possível para a imagem: ceci n'est pas une rose) |
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