I
noutros tempos sim a gaivota como inúmera serenidade
antes dos sacos de lixo onde se abastecem e resistem
procuro gaivotas reais descubro voos que comem destroços
procuro num livro calha ser o apocalipse
uma águia lamenta-nos dos céus (8:13)
procuro águias ainda pior envenenaram até as pombas
restam as gaivotas sim as gaivotas resistem
nem reais nem régias perfurando o látex
que preparava a milenar eternidade
gaivotas reciclando naufrágios e o nome da nossa inutilidade
fantasma da nossa excelência no exangue céu de Patmos
toleradas vidas de trapos soluçando sobre as toxinas
no nosso mar de cinzas e balanças sem afinação
suspensas e condensadas na réstia de um vento em declive
e a ninguém lembra já a engenharia pura dos ninhos
II
que assim se cubra quanto tanto se celebra
que a si própria seja estranha a poeira a que se chama glória
e exista sempre inquieta no seu manso espectáculo
que se dissimule como pouca coisa
o que sustenta o mundo e diz as profecias
que se reduza à cinza da modéstia
o fogo maior do orgulho e sua fusão a frio
e que a honra repetidamente apregoada
seja só súplica de silêncio e ervas salgadas
que o todo seja quase nada e sempre preferido Barrabás
e todos morram de sede comendo panem et circenses
e que também afinal o quase nada do que resta de tudo
precise de se mostrar brilhando sob o sol
que o santo se pavoneie (e só mergulhando
de asas abertas no diabo se possa vencê-lo)
tudo isso
tudo isso e o mais que não fique dito
na têmpera deste poema orgulhoso e descoberto
tudo isso
a ninguém lembra
Pedro Eiras, in Revista Inimigo Rumor nº 15, 2003
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