02/12/2017

Levanto à vista o que foi a terra magnífica 
e as estações mais bêbedas, 
e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo 
e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,
daqui a uma pouca ciência saberei pensar 
que algum pouco depois estarei morto, 
e só de o pensar já nem respiro, 
já quase em nada toco, 
já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito 
que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento 
e movendo-me com as unhas movo os nomes inúmeros 
para dizer que mal nasci logo me deram por morto,
e não fui tido nem havido na razão do episódio 
de um rosto ter passado por um espelho 
e ter desaparecido,
portanto não me venha ninguém falar de nada, 
sei bastante do que sabem todos, 
vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima, 
e acho até que é bonito, 
cada qual morre do quanto alcança e não alcança, 
e ninguém compreende, 
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas 
e passa, a água fácil, sem retôrno, 
porque nada tem retôrno e tudo é dificílimo 
(não só o máximo mas também o mínimo)

Herberto Helder, in "Servidões"

(no link abaixo, o poema dito por Fernando Alves, em maio de 2013, numa iniciativa da TSF com o apoio da Assírio & Alvim.)

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