11/09/2019

      In memoriam

     Soube há pouco da partida da prof.ª Matilde Pimenta. Depois de uma série de professoras de português que pouco me ensinaram para além do que estava nos manuais, a prof.ª Matilde Pimenta pôs-me, em definitivo, a ler. Não porque era o que me competia, mas porque queria compreender. Numa altura em que a obra obrigatória para leitura ainda não era "Memorial do Convento", de Saramago, mas "Aparição", de Vergílio Ferreira, a prof.ª Matilde conseguiu despertar o meu interesse, fez-me ir à procura - linha a linha. Quem já leu VF sabe que não é um autor fácil, talvez menos fácil quando se tem quinze ou dezasseis anos. Quando publiquei o meu primeiro livro, embora fosse - hoje sei - um livro fracote, quis levar-lho e fui bater à sua porta. Quis que ela soubesse que fizera parte, que fazia parte daquele meu caminho. Que faz e fará parte. Não sei se chegou a ler o mais recente, mas o que importa um livro na máquina do mundo? 

      O que importam as palavras quando uma professora doente oncológica é dada como apta para leccionar por uma junta médica e, por extensão, pelo estado português? Mas agora calo-me. Os anos, os anos... Não sei nada, volto a ser aquele adolescente numa mesa de escola, a tentar perceber o Bexiguinha dentro de mim, hoje domado, e em mais ou menos amena conversa com outros personagens de VF e de outros autores. Nesta hora em que a prof.ª Matilde vai para a sua última colocação, endereço à família os meus mais sinceros sentimentos. E a vocês que não a conheceram, mas que, espero, tenham também tido uma prof.ª Matilde no vosso percurso, um excerto de "Aparição", que, está decidido, vou reler:

      "Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. [...] Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o que agora me projecto? O meu futuro é este instante desértico e apaziguado. Lembro-me da infância, do que me ofendeu ou sorriu: alguma coisa veio daí e sou eu ainda agora, ofendido ou risonho: a vida do homem é cada instante - eternidade onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece -, centro de irradiação para o sem-fim de outrora e de amanhã. O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando."


alf

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