07/07/2021


Alguns poemas em prosa (c. 1956) do livro "Hermes, Cão, Estrela", de Zbigniew Herbert:

 
Episódio numa biblioteca
 
    Uma jovem loura está debruçada sobre um poema. Com um lápis afiado como uma lança transfere palavras para uma folha branca e traduz linhas, acentuações, cesuras. O lamento do poeta esquecido parece agora uma salamandra carcomida por formigas.
    Quando o carregamos sob fogo, acreditei que o seu corpo ainda quente seria pela palavra ressuscitado. Agora vejo palavras a morrer, sei que não há limite para o declínio. O que permanecerá depois de nós serão fragmentos de palavras dispersos na terra negra. Sinais de acentuação sobre o nada e a cinza.
 
 
Louca

    O seu olhar fulminante rapidamente me agarra como um abraço. Ela pronuncia palavras misturadas com sonhos. Ela chama-me. Serás feliz se acreditares e prenderes o teu camião a uma estrela. Ela é gentil quando amamenta as nuvens; mas quando a calma a abandona, ela corre pela beira-mar e agita os braços no ar.
    Reflectidos nos seus olhos vejo dois anjos expectantes nos meus ombros: o pálido e malévolo anjo da Ironia, e o poderoso, adorado anjo da Esquizofrenia.
 
 
O paraíso dos teólogos

    Vielas, vielas longas ladeadas por árvores que são cuidadosamente podadas como num parque inglês. Ás vezes um anjo passa por lá. O seu cabelo cuidadosamente encaracolado, as suas asas restolham em Latim. Ele segura nas suas mãos um instrumento limpo chamado silogismo. Ele caminha rapidamente sem agitar o ar ou a areia. Passa em silêncio pelos símbolos das virtudes em pedra, as qualidades puras, as ideias dos objectos e muitas outras coisas completamente inimagináveis. Nunca desaparece da vista porque ali não há perspectivas. Orquestras e coros mantêm-se silenciosos contudo a música está presente. O lugar está vazio. Os teólogos falam espaçadamente. Também isto é suposto ser evidência.


Os mortos

   Em consequência de estarem confinados na escuridão e do alojamento não arejado os seus rostos modificaram-se radicalmente. Adorariam falar mas a areia devorou-lhes os lábios. Só ocasionalmente agarram o ar com os seus punhos e tentam desastradamente erguer as cabeças como crianças. Nada os pode animar, nem crisântemos nem tão-pouco velas. Não conseguem reconciliar-se com a sua condição, a condição de coisas.


Inferno
 
    Contando a partir do topo: uma chaminé, antenas, um telhado de estanho deformado. Através de uma janela redonda vê-se uma jovem presa a linhas que a lua se esqueceu de encurtar e abandonada à mercê de coscuvilheiros e aranhas. Mais abaixo uma mulher lê uma carta, arrefece a face com pó de arroz, e continua a ler. No primeiro andar um jovem caminha para trás e para a frente pensando: Como posso ir lá fora com estes lábios mordidos e sapatos a desfazerem-se? O café no piso de baixo está vazio; ainda é de manhã. 
    Apenas um casal a um canto. Estão de mãos dadas. Ele diz: "Ficaremos juntos para sempre. Empregado, um café simples e uma limonada, por favor." O empregado vai para trás da cortina e uma vez lá, desata a rir.


Sete anjos
 
    Todas as manhãs aparecem sete anjos. Entram sem bater à porta. Um deles arranca-me o coração do peito. Leva-o à boca. Os outros fazem o mesmo. Depois as suas asas definham e os seus rostos passam de prateados a purpúreos. Saem batendo pesadamente os seus tamancos. Deixam o meu coração numa cadeira como uma pequena malga vazia. Leva um dia inteiro a enchê-lo de novo para que na manhã seguinte os anjos não me deixem prateado e alado.  
 
 
O lobo e o cordeiro

    — Apanhei-te — disse o lobo e bocejou. O cordeiro voltou os seus olhos lacrimejantes para o lobo. — Tens de comer-me? É mesmo necessário?
    — Lamentavelmente, tenho. É o que acontece em todos os contos de fada: Era uma vez um cordeirinho atrevido que se extraviou da mãe. No bosque encontrou um grande lobo mau que. . .
    — Desculpa, mas isto não é um bosque, apenas o jardim do meu dono. Eu não me extraviei da minha mãe. Sou órfão. A minha mãe também foi comida por um lobo. 
    — Não te preocupes. Depois de morreres os autores de literatura edificante tomarão conta de ti. Disporão o cenário, os motivos, e a moral. Não sejas duro comigo. Não fazes ideia do quão vazio é ser um lobo mau. Se não fosse Esopo estaríamos aqui sentados nas nossas patas traseiras a ver o pôr-do-sol. Isso dá-me imenso gozo. 
    Sim, queridas crianças. O lobo comeu o pequeno cordeiro, depois lambeu os seus lábios. Não ouçam o lobo, queridas crianças. Não vos sacrifiqueis por uma moral.   
 
 
O vento e a rosa
 
    Certa vez cresceu num jardim uma rosa. O vento apaixonou-se por ela. Eram completamente diferentes, ele — leve e justo —; ela — imóvel e pesada como sangue.
    Veio um homem com tamancos de madeira e com as suas mãos grossas arrancou a rosa. O vento saltou atrás dele, mas o homem fechou a porta na sua cara.
    — Oh, pudera eu tornar-me pedra — lamentou o infeliz — fui capaz de dar a volta ao mundo, fui capaz de me afastar por anos a fio, mas sabia que ela estaria sempre à espera.
    O vento percebeu que, para sofrer verdadeiramente, é preciso ter fé.
 
 
Galinha
 
    A galinha é o melhor exemplo do que viver constantemente com humanos acarreta. Ela perdeu completamente a leveza e a graciosidade de uma ave. A sua cauda aponta para cima sobre a sua alcatra protuberante como um chapéu demasiado grande e de mau gosto. Os seus raros momentos de êxtase, quando ela se sustem numa pata e fixa os seus olhos com pestanas membranosas são assombrosamente repugnantes. Acrescente-se a tudo isto aquela paródia de canção, súplicas de cana rachada sobre uma coisa indescritivelmente cómica: um ovo — branco, arredondado, maculado. 
    A galinha faz lembrar certos poetas.
 
 
Zbigniew Herbert, versões livres minhas (amadeu liberto fraga), a partir de "The Collected Poems: 1956-1998" (trad. Alisse Valles), Ecco/Harper Collins, 2008
 

 

 

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