03/01/2023

Discurso proferido por Wisława Szymborska, na cerimónia de entrega do prémio Nobel:

Dizem que a primeira frase de qualquer discurso é sempre a mais difícil. Bom, essa já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que as que estão para vir – a terceira, a sexta, a décima, e por aí fora, até à última linha – serão igualmente difíceis, dado que é suposto falar de poesia. Disse muito pouco sobre o assunto – quase nada, na verdade. E quando disse algo, tive sempre a suspeição de que não sou muito boa nisso. E é por isso que a minha prelecção será bastante breve. A imperfeição é mais fácil de tolerar em pequenas doses.

Os poetas contemporâneos são cépticos e desconfiados até, ou talvez principalmente, em relação a eles mesmos. Só relutantemente confessam publicamente que são poetas, como se tivessem um pouco de vergonha de o ser. Mas nestes tempos clamorosos é muito mais fácil reconhecer as nossas falhas, pelo menos se agrupadas por atracção, do que reconhecer os nossos méritos, dado que estes estão escondidos mais fundo e não acreditamos neles inteiramente. Quando preenchem questionários ou conversam com estranhos – i.e., quando não podem evitar revelar a sua profissão – os poetas preferem usar o termo genérico “escritor” ou substituir “poeta” pelo nome de outra actividade que desenvolvam para lá da escrita. Burocratas e passageiros de autocarro reagem com alguma incredulidade quando descobrem que estão a lidar com um poeta. Suponho que filósofos se deparem com uma reacção parecida. Apesar disso, estão em posição melhor, dado que frequentemente podem embelezar a sua vocação com algum título académico. Professor de filosofia: isso soa muito mais respeitável.

Mas não há professores de poesia. Isso significaria, afinal, que a poesia é uma ocupação que exige estudo especializado, avaliações frequentes, ensaios com bibliografia e notas de rodapé apensas e, por fim, um diploma atribuído cerimoniosamente. E isto significaria, por outro lado, que não bastaria encher páginas mesmo com os mais extraordinários poemas para alguém se tornar poeta. O elemento crucial seria um pedaço de papel oficialmente timbrado. Recordemos que o orgulho da poesia russa, o futuro poeta laureado Joseph Brodsky, foi em tempos condenado ao exílio interno precisamente com base nestes princípios. Chamaram-lhe “um parasita” por não ter um certificado oficial que lhe garantisse o direito a ser poeta.

Há vários anos, tive o prazer e a honra de conhecer Brodsky. E reparei que, de todos os poetas que conheci, ele foi o único que gostava de se dizer poeta. Ele pronunciava a palavra sem inibições. Bem pelo contrário: ele dizia-a com uma liberdade desafiante. Isto sucedia, parece-me, porque ele se lembrava das humilhações brutais por que passou na sua juventude.

Em países mais afortunados, nos quais a dignidade humana não é agredida tão prontamente, os poetas anseiam, obviamente, ser publicados, lidos e compreendidos, mas fazem pouco ou nada para se destacarem do rebanho e da rotina quotidiana. E, contudo, não foi há tanto tempo assim, foi nas primeiras décadas deste século, que os poetas se esforçavam por nos chocar com indumentárias extravagantes e comportamento excêntrico. Mas tudo isto era meramente para consumo público. Chegava sempre o momento em que os poetas tinham de fechar a porta atrás de si mesmos, despir o manto, os adornos e outras parafernálias poéticas, e enfrentar – silenciosa e pacientemente aguardando o seu próprio ser – a folha de papel ainda branca. Porque no fim de contas é isso o que realmente interessa.

Não é por acaso que são produzidos tantos filmes biográficos acerca de grandes cientistas e artistas. Os realizadores mais ambiciosos tentam reproduzir convincentemente o processo criativo que levou a importantes descobertas científicas ou ao surgimento de uma obra-prima. E pode-se representar certo tipo de trabalho científico com algum sucesso. Laboratórios, instrumentos vários, maquinaria elaborada a que é dada vida: cenas desse tipo podem captar a atenção do público durante algum tempo. E esses momentos de incerteza – irá o teste, realizado pela milionésima vez com algumas pequenas modificações, finalmente produzir o resultado desejado? – conseguem ser bastante dramáticos. Filmes sobre pintores podem ser espectaculares, desenvolvem-se em torno das várias fases da evolução de um pintor famoso, da primeira linha feita a lápis até à derradeira pincelada. E a música cresce em filmes sobre compositores: as primeiras notações da melodia que soa no ouvido do músico acabam por emergir como um trabalho maduro na forma de uma sinfonia. Claro que isto é tudo muito inocente e não explica o estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas pelo menos há algo para ver e ouvir.

Mas os poetas são terríveis. O seu trabalho não é nada fotogénico. Alguém que se senta a uma mesa ou se reclina num sofá enquanto, imóvel, fita a parede ou o tecto. De vez em quando essa pessoa anota sete linhas, apenas para riscar uma delas quinze minutos depois, e depois passa mais uma hora durante a qual nada se passa… Quem suportaria observar semelhante coisa?

Eu mencionei a inspiração. Os poetas contemporâneos respondem esquivamente quando lhes perguntam do que se trata, e se existe realmente. Não é que nunca tenham conhecido a benção desse impulso interior. É que não é fácil explicar a outra pessoa aquilo que não se compreende.

Quando, ocasionalmente, me indagam acerca disso, também eu me escudo. Mas a minha resposta é esta: A inspiração não é um privilégio exclusivo de poetas ou artistas. Há, houve, haverá sempre um determinado grupo de pessoas a quem a inspiração visita. Esse grupo é constituído por aqueles que escolheram conscientemente a sua vocação e fazem o seu trabalho com amor e imaginação. Pode incluir médicos, professores, jardineiros – podia listar centenas de profissões. O seu trabalho torna-se uma aventura contínua enquanto conseguirem descobrir novos desafios no mesmo. Dificuldades e contratempos não fazem esmorecer a sua curiosidade. Um enxame de novas questões emerge de cada problema resolvido. O que quer que seja a inspiração, nasce de um contínuo “Não sei”.

Não há muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para se desenrascar. Trabalham porque têm de o fazer. Não escolheram este ou aquele trabalho por paixão; as circunstâncias das suas vidas escolheram por eles. Trabalho sem amor, aborrecido, valorizado apenas porque outros nem isso têm – eis uma das mais duras misérias humanas. E não há sinal algum de que os séculos vindouros venham a produzir quaisquer mudanças para melhor no que a isto diz respeito. E assim, ainda que negue aos poetas o monopólio da inspiração, coloco-os, apesar de tudo, num grupo selecto de amados pela Fortuna.

Chegados a este ponto, no entanto, poderão surgir algumas dúvidas na assistência. Toda a espécie de torturadores, ditadores, fanáticos, e demagogos sedentos de poder com uns quantos slogans gritantes, apreciam também os seus trabalhos, e levam a cabo os seus deveres com fervor inventivo. Bem, é verdade. Mas eles “sabem”, e o que quer que saibam basta-lhes para todo o sempre. Não querem saber de mais nada, dado que isso poderia diminuir a força das suas discussões. Mas qualquer conhecimento que não leve a novas questões rapidamente se esgota: não consegue manter a temperatura necessária à manutenção da vida. Em casos mais extremos, bem conhecidos da história antiga e moderna, constitui mesmo uma ameaça mortal à sociedade.

Por isso tenho em tão alta conta aquela pequena frase “Não sei”. É pequena, mas voa em asas poderosas. Expande as nossas vidas para que inclua espaços dentro de nós bem como planuras externas nas quais a nossa pequena Terra está suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo “Não sei”, as maçãs do seu pequeno pomar talvez tivessem caído ao chão como granizo e, na melhor das hipóteses, ele ter-se-ia dobrado para agarrar uma e comê-la com deleite. Se a minha compatriota Maria Sklodowska-Curie nunca tivesse dito a si mesma “Não sei”, teria provavelmente acabado a leccionar química numa escola privada para raparigas de boas famílias e acabado os seus dias a desempenhar este trabalho inteiramente respeitável. Mas ela continuou a dizer “Não sei” e essas palavras levaram-na, não uma, mas duas vezes a Estocolmo, onde espíritos incansáveis e inquisitivos são ocasionalmente premiados com o Nobel.

Os poetas, se forem genuínos, devem também continuar a repetir “Não sei”. Cada poema assinala uma tentativa de responder a esta afirmação, mas assim que o ponto final bate na página, o poeta começa a hesitr, começa a perceber que esta resposta específica é pura panaceia, completamente inadequada. E por isso os poetas continuam a tentar, e mais cedo ou mais tarde, os resultados sucessivos da sua insatisfação são agrupados com um clip por historiadores da literatura e designados “obras”.

Por vezes sonho com situações que nunca se poderão tornar realidade. Por exemplo, imagino audaciosamente que tenho uma oportunidade de falar com Eclesiastes, o autor daquele lamento comovedor sobre a vaidade de todas as empresas humanas. Curvo-me pronunciadamente diante dele, porque ele é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois agarro a sua mão. “Não há nada de novo debaixo do sol”: foi o que escreveste, Eclesiastes. Mas tu mesmo nasceste novo debaixo do sol. E o poema que criaste também ele é novo debaixo do sol, uma vez que ninguém o escreveu antes de ti. E todos os teu leitores são também novos debaixo do sol, uma vez que aqueles que viveram antes de ti não poderiam ter lido o teu poema. E esse cipreste sob o qual estás sentado não cresceu desde o princípio do tempo. Veio a ser através de outro cipreste semelhante ao teu, mas não exactamente igual.

E, Eclesiastes, gostava também de te perguntar em que nova coisa debaixo do sol tencionas trabalhar agora? Um acrescento a pensamentos que já expressaste? Ou talvez estejas tentado a contradizer alguns agora? No teu trabalho inicial mencionaste a alegria – que importa que seja fugaz? Talvez o teu poema novo debaixo do sol seja acerca da alegria? Já tomaste notas, tens esboços? Duvido que digas: “Já escrevi tudo, nada mais tenho a acrescentar”. Nenhum poeta no mundo pode dizê-lo, muito menos um grande poeta como tu.

O mundo – independentemente do que possamos pensar quando ficamos aterrorizados pela sua vastidão e pela nossa impotência ou quando estamos amargurados com a sua indiferença para com o sofrimento individual de pessoas, animais, e talvez até plantas (porque estamos nós tão certos de que as plantas não sentem dor?); o que quer que possamos pensar das suas planuras perscrutadas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas começamos a descobrir, planetas já mortos, ainda mortos, simplesmente não sabemos; o que quer que possamos pensar acerca deste teatro imensurável para o qual temos bilhetes reservados, mas cuja duração é risivelmente curta, unida como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos mais sobre este mundo – ele é espantoso.

Mas “espantoso” é um epíteto que esconde uma falácia. Ficámos espantados, apesar de tudo, por coisas que se desviam de algumas normas bem conhecidas e reconhecidas universalmente, de uma evidência a que nos acostumamos. Mas a questão é que não existe tal mundo óbvio. O nosso espanto existe per se, não é baseado numa comparação com outra coisa.

É certo que, no discurso coloquial, no qual não paramos para pensar em cada palavra, todos usamos frases como “o mundo normal”, “a vida normal”, “o normal decorrer dos acontecimentos”. Mas na linguagem da poesia, em que cada palavra é pesada, nada é habitual ou normal. Nem uma só pedra nem uma só nuvem sobre esta. Nem um só dia nem uma só noite depois. E acima de tudo, nem uma única existência, nem a existência de ninguém neste mundo.

Parece que os poetas terão sempre o seu trabalho a correr de feição.

 

WISŁAWA SZYMBORSKA

7 de Dezembro de 1996

Estocolmo

 

versão de amadeu liberto fraga a partir do texto fixado no livro "Poems New and Collected", Harvest Book/Harcourt (edição americana que segue inteiramente a da faber & faber), com tradução de Stanisław Barańczak e Clare Cavanagh.  

 

 

 

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