07/05/2015

                                                                                                            Gaccanto vā gacchāmī-ti pajānāti


agora que o litoral nos encontra varridos pela intempérie,
entre troncos largados para a fotografia e plásticos inelutáveis,
deixemos os corpos trabalhar a dicção do silêncio, a maré
governar-se num desses recessos da alma que ciciando
são a unidade na inverosimilhança das estações.
agora posso assomar acidentalmente à tua face,
afiar o espectro do verso na pedra de amolar dos teus lábios,
aprender as brancas que já nos visitam como sígnicas amostras

de madrugadas apunhaladas com manhãs de tara perdida.
retiremos ao orvalho a asfixia líquida da sua falsa passividade,
da tempestade da nossa teimosia um grito a rasar o futuro.   
toda a geografia foi uma invenção da língua: as ruas dizem
o teu nome quando se cruzam e suas coordenadas implodem
em freático entrançamento dos semáforos da vida.
nascemos todos os dias para o espanto de nos conhecermos,
a respiração imitando arcadas além de qualquer móbil,

lá onde o canto dual é o da ave transparente que escolhemos
para nos confundirmos com a paisagem transeunte.
caminho contigo, ou voo, ou vou apenas. e é como se trouxesses
o mar alto até às ruas da baixa, mesmo se ouvi nas notícias
que morreram cento e trinta num atentado, que houve um eclipse
enquanto dormia deste lado da infâmia. caminhamos e dás-me
o avesso da morte a cada passo. atravessamos pontes que não
o são apenas: na tua voz chego ao outro lado, tiras de mim

o medo geracional de dizer a palavra amor, difícil de escrever
na tónica adequada ao tempo vertente. sentamo-nos à margem
das coisas que correm – os rios são, por essência, heraclitianos –,
e a tarde há-de apanhar o que em mim restar ainda de lírico,
afogando-o ao pé de uma gaivota omnívora que engraçará contigo.
limparás o casaco dos pêlos do gato ou, por hipótese, evitarás
nos teus os meus olhos de cão faminto. aquelas águas argentadas,
a pequena nódoa na tua blusa, a sinceridade com que irás depor

em redor os teus projectos, provarão que já não aguento com
facilidade a beleza. há-de cair um avião por vontade do piloto,
uma menina síria há-de erguer os braços em rendição à máquina
fotográfica que confundirá com uma arma. acredita, meu bem.
este mundo é bruto, mas é o que ficará para o filho do teu filho.
por isso terei de dizer-te que uma tarde assim não terá regresso,
apesar da evidência do teu embaraço entre o rosa das magnólias
e o bronze do ardina – sequer um time-lapse seria registo fiel.

um dia, ao descer a rua, escorregarei e tu amparar-me-ás.
precisarei da tua mão como preciso agora para suportar a ideia de
que até a ignomínia contribui para a sublimidade na vida. dá-ma
agora e eu prometo que me calo. entenderás quando disser que
o nosso condomínio não é deste mundo. pronto, chiu. agora.
(ou talvez uma tarde não seja metonímia de coisa alguma. assim,
aquele que caminha sabe apenas isso. entre poéticas, entre olhar
e não, o fake-simile: sequer, flexão casual de meus dedos incertos).


© amadeu liberto fraga

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