(a pedido de alguns amigos leitores, reponho aqui um texto então escrito a quente, agora retocado aqui e ali. permanece apenas um registo, mantém-se o essencial.)
soube
da morte de Herberto Helder por mensagem. o meu telemóvel é agora um
instrumento de morte. menti à amiga que ma comunicou e disse que me tinham
vindo as lágrimas aos olhos: a verdade é que chorei como um menino, encolhido
no assento do autocarro que me levava para uma aula na faculdade. uma falta de
respeito pelo poeta, eu sei. talvez uma falta de respeito para com a sua
família, também. ainda assim, não soube conter as palavras que desaguavam nos
meus olhos. de cada vez que repetia mentalmente “gregos”, “necrológios”,
“paixão”, ria e chorava ao mesmo tempo. nessa bendita aula, uma
professora-autora falou acerca do poeta a uma turma mais ou menos interessada,
mais ou menos conhecedora. fiquei em silêncio a tentar enganar a amiga da
mensagem, que também lá estava. a cada comentário ou paragem cerebral de
não-leitores, repetia para mim que “a morte é passar, como rompendo uma
palavra, / através da porta, / para uma nova palavra”.
foi
uma homenagem conseguida, para quem lá esteve. não desejaria estar noutro
sítio. eu estive a meio gás, pensando que, na sua hora, Herberto terá levado
“(...) uma flecha / pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado /
loucamente / por um caçador de que nada se sabia.” no dia em que o poeta do
corpo deixou o seu corpo – ironia terrível – multiplicaram-se as partilhas de
poemas e manifestações públicas de amizade. eu não conhecia o poeta cujas mãos
eram cítara, por isso me doeu que, como num relâmpago intelectual, tantos
iluminassem tão grande obra num só dia; por isso “não posso ouvir cantar tão
friamente”. eu não conheci “o” Herberto porque ele quis assim e eu também. a
minha relação com o seu corpo poético estará sempre armadilhada: fuga e
captura, em loop. de um ponto de
vista geracional cheguei atrasado. enquanto leitor, até a morte procurarei
aprender. os seus livros foram para mim uma “casinfância” na qual me formei
leitor e homem, apalpando, cego, as “líricas rodas da vida”.
cresci
com aquele “leite cantante” que me ensinou que um poema se começa com o objecto
mais vulgar – uma bic de tinta preta – e que assim se atinge o sublime, que “subindo
pela caneta”, o poema regressa e “Tudo se levanta como um cravo, / uma faca
levantada.” Herberto fez de leitores e obra um continuum, uma “devastação inteligente”. hoje, apetece-me dizer-te,
Herberto, coisas que poucos entenderão. apetece-me lembrar quando cheguei à
“assombrada roseira” que espalhaste no ventre de todas as mulheres e que, ora
quente, ora fria, presidiu às relações, às mulheres que a mim se entregaram. ciciar-te
que anseio pela roseira derradeira. apetece-me dizer-te que tenho muita vontade
de cerrar “(…) os olhos para ouvir durante toda a noite, / e todo o mês, e
recomeçando no interior / da minha vida – o sangue.” dizer-te que hoje sou como
“Alguém que se deitasse / com um grito / dentro” não basta.
apontado
como ininteligível, respondeste: “Meu deus, faz com que eu seja sempre um poeta
obscuro.” tudo o que se proferir para lá disso, será excrescência. a ti, como a
ninguém, pertenciam o underground e o
sagrado, o cósmico e o concreto. budista e hedonista, homem-língua do inominável,
corpo-vaso do sopro sagrado, correndo “pelo orvalho dentro”. tu, que tantas
vezes calçaste luvas de sangue para nos devolveres o terreno e o eterno, de
quem não ficará registo “em nenhum écran do Deus descontínuo”, estás agora
livre de todas as servidões. és uno e verbo. és, como quiseste, gramatical. não
há despedida, sei onde te encontrar. que “funda manhã” aquela, fiquei-me dobra
a pedir ar ao corpo. entrei na sala “de dentro para fora”, sorrindo
educadamente “até cada objecto se encher de luz”. fraquejei, foi uma fracção.
ou foi uma hora? ou foi... não. a professora-autora pressionou o play e eu encolhi-me de novo na cadeira,
desta feita com inveja. a tua voz era só para mim. ou não era? lembrei que o
dardo se atira “com o corpo todo”, fiz-me alvo. estóico. escutei.
com o
livro Servidões tornou-se evidente
estarmos já de fora do poema contínuo: “ele que tinha ouvido absoluto para as
músicas sumptuosas do verso livre / ouvia a cada nó de sílaba / um silêncio de
morte”. da aflição que isto causou à crítica não falarei. aduzo apenas uma
hipótese de leitor: o seu último livro – Poemas
Completos – abandona a ideia de continuidade, pelo que leio a obra de
Herberto como composta por três poemas. o primeiro aquele contínuo que termina
com os inéditos de A Faca Não Corta o
Fogo; o segundo Servidões, no
qual “matou o poeta contínuo”; o terceiro A
Morte Sem Mestre, no qual resolveu a sua biografia enquanto escrevia, a seu
modo, um ars moriendi para ajudar,
não a si mesmo, mas os seus leitores. não sei se esta dos três agradaria a Herberto;
é que todo o tronco precisa de dois braços para viver e morrer. depois da
desarrumação levada a cabo por Cesariny, Herberto Helder é o mælstrøm
da literatura portuguesa. mesmo aos que não o lêem ainda, a esses “rebenta-lhes
a flor na nervura”. doravante, muitos (se não todos) escreverão contra, porque
a sua obra é “a frase de que” somos “filho”. daqui a uns dias talvez releia o Húmus, do Raul Brandão. agora vou
mergulhar os polegares numa laranja.
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