09/11/2016

Há séculos que a mesma série de figuras repete os mesmos gestos. Há séculos que a mesma mulher esfarrapada pare e o mesmo cavador revolve a terra. Há séculos que comem o mesmo pão e a mesma usura os leva até à cova. Há séculos que choram as mesmas lágrimas e o monte deita a mesma água. As mulheres trazem os pequenos ao colo e falam-lhes como lhes falaram a elas. O que se gasta, o que a dor e a vida consomem, é a parte externa: as lágrimas renovam-se sempre. As leiras dão sempre o mesmo pão escasso, no monte não se estanca o fio de água, que, como o fio de ternura, reproduz a vida e remoça sempre quatro palmos de erva. A mulher, esta ou outra, chora debruçada sobre a masseira, pare com dor no mesmo catre, morre com dor na mesma enxerga.

Raul Brandão, in "Húmus"

Retrato de Raul Brandão e de sua esposa D. Angelina Brandão, 1928, òleo sobre madeira de Columbano Bordalo Pinheiro 

30/10/2016

"Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio", Nº 1 setembro 2016.

Coordenação: Victor Oliveira Mateus




COLABORADORES:

Adalberto Alves, Albano Martins, Alberto Pereira, Alberto Riogrande, Alexandre Bonafim (Brasil), Alice Fergo, Amadeu Baptista, Amadeu Liberto Fraga, Ana Mafalda Leite, Ana Maria Puga, André Alves, António de Almeida Mattos, António Cândido Franco, Antonio Carlos Sechin (Brasil), António Ferra, António José Queiroz, António Salvado, Artur Coimbra, Carlos Afonso, Casimiro de Brito, Cecília Barreira, César A. Miranda de Freitas, Cláudia Lucas Chéu, Cláudio Lima, Daniel Gonçalves, Ernesto Rodrigues, Eugénia Bettencourt, Iacyr Anderson Freitas (Brasil), Inez Andrade Paes, Isabel Cristina Pires, Jeannette L. Clariond (México), Jessica Falconi ( Itália ), João Rasteiro, Jorge Velhote, José Jorge Letria, José Viale Moutinho, Julia Barella (Espanha), Julio Ferreira Leite, Luís Aguiar, Luís Fernando Chueca Field (Peru), Luís Filipe Pereira, Luís Filipe Sarmento, Luís Quintais, Maria Augusta Silva, Maria José Quintela, Maria Quintans, Marisa Martinez Pérsico (Argentina - Itália ), Mbate Pedro (Moçambique), Montserrat Villar González (Espanha), Orlando Barros, Paulo Inocêncio Moreira, Paulo Pêgo, Pompeu Miguel Martins, Renata Pallottini (Brasil), Renato Epifânio, Ricardo Gil Soeiro, Ricardo Marques, Rui Rocha (Macau), Ruy Espinheira Filho (Brasil), Samuel Pimenta, Sergio Laignelet (Colômbia - Espanha), Vicente Alves do Ó, Xavier Oquendo Troncoso (Equador), Xosé Lois Garcia (Espanha - Galiza).
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Nota: os poetas de Língua Castelhana foram todos traduzidos para Português por Victor Oliveira Mateus à excepção do poema de Montserrat Villar González que foi traduzido por Jorge Fragoso. O poema de Xosé Lois Garcia virá em Língua Galega, O ensaio de Jessica Falconi foi escrito directamente em Português.

22/09/2016

oficinas de carne ambulantes, o desengano acena ao leitor que somos.
desafiem-se algumas notas desse parente do simum,
deixemos o sorriso ser hiena enquanto alguém se autoflagela
até um fio de luz antibiótica nos resgatar
daquela roda de poço que puxava água aos olhos.
cuidado, o fio que brilha pode ser de navalha,
diz o primeiro leitor. e o cínico, escondido atrás do papel,
responde: há muito me cortei, é do sangue que escrevo.
deflagra a dúvida, parte-se o pescoço à certeza mais dura
e do tutano drena-se surpresa. ardamos de não saber,
mesmo se a dada altura precisarmos tanto de luz.
cansada de mentir à folha, a língua dirá que o silêncio
do algoz começa no espelho, que a pior das noites é aquela
que se instala nas paredes interiores do corpo.
dorme enquanto podes, diziam uns olhos prevendo
a operação stop. magoar-te-ei e deixar-te-ei vivo para
que não esqueças: mesmo as ruas estão obrigadas
aos dois sentidos da derrota. não se sabe ao certo
quantos fantasmas de pátroclo aguenta um homem.
sabe-se, porém, que foi o homem a inventar o anzol
e que é a humanidade hoje a ser pescada em lesbos.
queria cobrir-me todo de terra como de nojo,
porque a poesia é um velho com cataratas
e o poema uma criança a brincar. ulisses já não tem
para onde regressar e o cínico, esse, segue para sul,
onde ainda é possível morrer sem interrupções
entre uma laranja e a memória do sal na pele,
sem nunca regressar dos mortos que escurecem
as paredes e engrossam a voz a cada noite destilada.
tréguas é a palavra menos pensada de toda a história
e o mal menor é mesmo que nas livrarias deste país
os gregos se vendam ao centímetro quadrado.

© amadeu liberto fraga

16/06/2016

1.

Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o na teimosia branda do casario, onde à noite as mulheres,
todas de esperança vestidas, enfeitam de pequenos búzios
a terrível margem do silêncio

Ah, ninguém já ousa semelhante Viagem!
Ou sequer um frágil aceno, como quem convoca, no rendilhado
das areias, a beleza de uma miragem; espécie de visão fulgurante
onde uma porta auspiciosa se firma

Sobre esta terra me deito e digo sol
Digo-o com o feliz desalento que sempre trago, com o desapego
de duas mãos na fértil aridez do Deserto

Victor Oliveira Mateus, in "Pelo deserto as minhas mãos"


11/05/2016

I

noutros tempos sim a gaivota como inúmera serenidade
antes dos sacos de lixo onde se abastecem e resistem
procuro gaivotas reais descubro voos que comem destroços
procuro num livro calha ser o apocalipse
uma águia lamenta-nos dos céus (8:13)
procuro águias ainda pior envenenaram até as pombas
restam as gaivotas sim as gaivotas resistem
nem reais nem régias perfurando o látex
que preparava a milenar eternidade
gaivotas reciclando naufrágios e o nome da nossa inutilidade
fantasma da nossa excelência no exangue céu de Patmos
toleradas vidas de trapos soluçando sobre as toxinas
no nosso mar de cinzas e balanças sem afinação
suspensas e condensadas na réstia de um vento em declive
e a ninguém lembra já a engenharia pura dos ninhos


II

que assim se cubra quanto tanto se celebra
que a si própria seja estranha a poeira a que se chama glória
e exista sempre inquieta no seu manso espectáculo
que se dissimule como pouca coisa
o que sustenta o mundo e diz as profecias
que se reduza à cinza da modéstia
o fogo maior do orgulho e sua fusão a frio
e que a honra repetidamente apregoada
seja só súplica de silêncio e ervas salgadas
que o todo seja quase nada e sempre preferido Barrabás
e todos morram de sede comendo panem et circenses
e que também afinal o quase nada do que resta de tudo
precise de se mostrar brilhando sob o sol
que o santo se pavoneie (e só mergulhando
de asas abertas no diabo se possa vencê-lo)
tudo isso
tudo isso e o mais que não fique dito
na têmpera deste poema orgulhoso e descoberto
tudo isso
a ninguém lembra


Pedro Eiras, in Revista Inimigo Rumor nº 15, 2003

09/03/2016

"Paradiso, Um Pouco"

(Testemunho de Herberto Helder sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, originalmente publicado na revista Relâmpago nº 9, Out. 2001, republicado na revista-caderno 7faces, ano 5, edição 10, Ago. - Dez. 2010)

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24/02/2016

era quase noite.
agora é quase sempre quase noite.
a indefinição da distante paisagem
a tremer nas canas ou nos olhos
aproximou a lente das águas paradas
num plano cansado, contrapicado.
engana-se o obturador,
mas não se engana facilmente
a ingenuidade de uma ave.
silvando o ar, agitando quase
de noite, quase sobre a minha cabeça
perdida, uma garça-real silvou
ao perto e longe daquele resto
de diálogo que tinha comigo, disfarçado
de disparo. esqueci-me de programar
o balanço de brancos para o fim do dia.
ficou tudo difuso. era quase noite.
desequilibrei-me. não caí,
mas também não me levantei.
era quase eu.

amadeu liberto fraga

07/01/2016

04/01/2016

(ao antónio, o primeiro estóico que conheci)

o longe é uma pedra quente que se agarra.
quando era miúdo atirei uma dessas e atingi
a cabeça do antónio. hoje não sei nada dele
mas sei que esta educação pela pedra disse
então, como agora: quando violentamos
alguém, é o braço que não volta, não a pedra.
um insulto de criança, um instante com sua
raiz no mais sincero e infantil mal.

dente por dente. um poema não salda dívidas,
nem se pode esperar de um mestre como o mar
que nos tire de dentro da caixa torácica a pedra
instalada pela culpa. o joão cabral sabia da
dureza de certos homens. hoje sei: coisas
como uma pedra só dão fruto se deixarmos.
o antónio não deixou. ferido, ensinou-me.
depois do mar, o antónio foi o meu mestre.

só mais tarde vieram os músicos e os poetas.


amadeu liberto fraga