o primeiro contacto que tive com a
obra de Bertolucci (1941-2018) foi o seu 1900, filme que de certo modo fecha o
período neo-realista da sua filmografia. nunca mais consegui apagar da memória
a cena em que Atilla, o fascista interpretado por Donald Sutherland, mata uma
criança aterrorizada, numa espécie de acidente procurado, sem remorso,
partindo-lhe a cabeça de encontro a uma coluna. até hoje esta cena persegue-me
bem mais do que salós e sucedâneos.
seguiu-se Último Tango..., que não
me impressionou absolutamente nada, e La Luna, já de 1979, que inaugura o
Bertolucci que mais me interessa. sempre vi este filme como uma tentativa de
trazer a tragédia grega para os nossos dias, projecto que me parece conseguido
e continuado nos dois últimos filmes: The Dreamers e Me and You (embora neste
último se sentisse alguma bonomia porventura escolhida por ser a despedida), ao
mesmo tempo mostrando os sonhos falhados de uma certa geração, quer pela big
picture do maio de '68, por ex., quer pela falência da instituição
família.
posso também falar de filmes em que
o espaço – natural ou aquele erguido pela mão humana – tem um papel
preponderante: é por esta lente que escolho apreciar filmes tantas vezes criticados
pejorativamente, como The Sheltering Sky (muito distante do livro que o
originou, é certo), Little Buddha, ou Besieged, em que a vida interior das
personagens e a paisagem exterior se relacionam - por analogia ou por
contraste.
mas se tivesse de escolher um filme
para apresentar o realizador a quem nada dele conheça, decidir-me-ia por The
Conformist, de 1970. neste filme, bem como em The Spider's Stratagem (este
baseado num conto de Borges), temos a big e a small picture – o fascismo e a disfuncionalidade
familiar – tudo a partir da ideia de conformismo, de um quotidiano falsamente
asséptico, num cocktail que junta espionagem, drama, intervenção, fazendo-nos
questionar o que é afinal a normalidade, ou se tal conceito é sequer
válido.
também se pode já ver ali o cuidado
com o espaço, com o modo como este pode ser filmado para transmitir uma
determinada mensagem – seja a luz, seja a aproximação da câmara, por vezes a
lembrar Godard – quer nos interiores, quer nos exteriores. escolho-o porque é
urgente revê-lo, perceber porque nos interpela, porque nos faz pensar no
passado, no presente e no futuro, como se as coisas não tivessem mudado assim
tanto (será que mudaram?). escolho-o porque é um filme que nos pede agitação,
revolta, revolução.
amadeu liberto fraga
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