28/02/2019

Cidade

                                                                                                            ao Alfredo de Azevedo

A cidade é negra e cresce para dentro 
com ruas cada vez menos de cada homem
onde nunca amanhece e é sempre anoitecer
- um anoitecer derradeiro pelo sangue que escorre dos anúncios luminosos.

As casas que se levantam sufocam as avenidas,
quebram os ventos, apagam o sol entre os seus braços,
não multiplicam as estrelas nos seus telhados de cimento,
ensombram os arvoredos, sazonando apenas frutos amargos de carvão.

O horizonte é mais perto pelo fumo envenenado 
que faz tombar as aves se elas tentam fugir.
As estradas para o mar fecham-se nas bocas dos esgotos
e nos guindastes pasmados por tanto infinito inútil.

Manchas de gasolina e sangue avermelham o rio
onde os peixes perdem a cor e a direcção da foz,
e os barcos que se arrojam a uma última aventura
encalham em cadáveres, em pontes abatidas, em destroços de naufrágios.

Sebes de espingardas ladeiam os jardins
onde crianças brincam aos soldados morrendo a cada instante,
e nos jornais em que os mendigos embrulham a comida
há margens, sulcos sangrentos denunciando assassínios e suicídios.

Nenhum homem cabe já dentro dos muros da cidade:
quer libertar-se da sua névoa, do seu fumo, do seu ruído:
adormecer no caminho mais luminoso das estrelas cadentes
para não dormir nas margens dum corpo algemado pela fome.

A Morte dorme no peito dos habitantes da Cidade 
como o sol dentro do pão, dos olhos e da água;
e nos bancos, nos casinos, nas vielas, nos hospitais
todos se lhe entregam com o jeito natural de quem se deita numa cama.


José Bento, in "rev. Árvore nº4, vol. II - 1º fascículo" 

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