30/04/2019




( diarística, mais ou menos )


mais um passeio pelo parque. durante a caminhada percebo que a bateria da máquina chegou ao casco, enquanto o dedo e depois o pé - afectados por uma queda há uns meses - começam a latejar: à medida que o pé aquece a dor diminui mas não desaparece na íntegra. procuro concentrar-me nas coisas ao meu redor, as que perdi para sempre porque levei a máquina sem bateria. foco. as margens do lago repletas de sementes, pétalas e lodo a servir de camuflagem a cágados e rãs. um cisne eufórico que corta as águas certeiro para se alimentar de girinos, sujando as asas em toda a sorte de detritos flutuantes; uma libélula enorme de um lapiz lazuli como nunca vira pousa no canavial mesmo ao meu lado, como se dizendo: bem feito. uma mãe ganso e suas crias vagueiam pelas águas em busca de alimento. uma das crias salta usando os seus princípios de asas e fecha o bico sobre um moscardo. adiante, num carreiro, uma cria de galinhola morta. formigas.

mais adiante, um casal pratica yoga, enquanto um amigo, depois de colocar uma corda elástica entre troncos, ensaia equilibrismo. uma família com uma criança pequena diverte-se junto de cisnes e cágados. uma velhinha abre um saco cheio de pão seco e é cercada por aves várias. um casal namora no esplendor da relva, entre lençóis de pequenas flores brancas. já no regresso a casa, sob um túnel de videiras, uma jovem de bicicleta tenta em vão que o vento não lhe levante o vestido. sorri e eu sorrio de volta. o perfume da jovem perde-se na intensidade de umas flores marginais, não muito distantes de uma planta parasita cuja beleza subjuga a da árvore vampirizada. um velho que vejo com frequência pelo parque mantém a sua antipatia, ou talvez as minhas feições não lhe inspirem qualquer confiança. a escassos metros da saída do parque, o meu corpo pede-me (ou dá-me) uma longa inspiração. no decurso dessa inspiração e expiração percebo enfim que algo me abandonou. algo que levou demasiado tempo a deixar-me. dói-me o pé, mas com as dores físicas posso eu bem.

quase em casa ainda ouço num charco rãs a coaxar e recordo os simbolistas e o O'neill, os caminhantes Rousseau e Thoreau, e outras coisas mais ou menos aleatórias. blá, blá, blá, passarinho, piu, piu, a primavera, lugares comuns, etc. passo os dias a evitar lugares comuns, mas as pessoas precisam deles: não na escrita, evidentemente na vida. só quem não passou por nada poderá dizer o contrário. o lugar comum é sinónimo de segurança, estabilidade. gostamos de não gostar, ou talvez o contrário. não que defenda ser como aquelas pessoas que viajam apenas para procurar em cada cidade o que é igual em todas. isso era outra conversa dentro desta. casa, computador: golpe na venezuela, ciclone em moçambique, uns patetas na universidade a mostrar que o associativismo fechado à comunidade e as praxes de toda a espécie já deviam ter sido banidos há muito. balanço geral: percebo que estou um pouco menos zangado com a escrita, i.e., comigo mesmo.



amadeu liberto fraga

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