21/02/2020


      Eduardo Prado Coelho, um homem feliz
 
     Passou recentemente na RTP2 um documentário sobre Eduardo Prado Coelho, "Resistir à Cegueira do Mundo", realizado e escrito por Abílio Leitão e por Fernando Luís Sampaio. Se os realizadores mantiveram o guião, devo ter por lá uma pequena intervenção, um breve depoimento. Mas nem por isso consegui encontrar um motivo para ver o documentário, não por qualquer espécie de desconfiança em relação ao objecto e aos seus autores, mas porque não consigo olhar para esse passado.
    Eduardo Prado Coelho teve um papel importantíssimo nos vários domínios da cultura deste país, ao longo de mais de 40 anos. A sua presença, nos media, era quase diária, ninguém tinha uma exposição pública tão assídua: ele era a figura do crítico, do divulgador, do intelectual que se instalava com uma enorme felicidade para nos “dar acesso”, antes da “época do acesso”, segundo a fórmula consagrada de Jeremy Rifkin, permitir a toda a gente dispor de uma vitrine. Tudo nele era público, mesmo as paixões deixavam traços em dedicatórias e páginas confidenciais. Com ele, aprendia-se tanto sobre as coisas da alta cultura como sobre a cultura de massas. Nada do que fazia parte deste mundo lhe era estranho.
     E, no entanto, o seu mundo desapareceu completamente, a grande velocidade, e hoje já não consegue suscitar senão visões melancólicas ou uma grande resistência. A cultura, a literatura, a política, o espírito do tempo, nada se mantém intacto e é escusado pensar que é possível restaurar algo que se pareça com a presença que Eduardo Prado Coelho teve neste país em tempos ainda não muito recuados. É doloroso dizê-lo? Talvez. Mas não há outra maneira de olhar de frente a nossa realidade.
      Actualizar-se, todos os dias e a toda a hora, foi o que Eduardo Prado Coelho praticou com uma arte e um júbilo inauditos: ele vivia na dimensão do novo e do glorioso horizonte do futuro, numa altura em que essa era a ideologia dominante da nossa época. Ele era o mediador por excelência, na época em que necessitávamos de mediadores, de escritores, de filósofos, de artistas. Olhemos com crueldade para o nosso tempo e verifiquemos: já não precisamos de nenhuma dessas figuras nem sequer sabemos onde elas andam. 
     Hoje, estamos imersos num presente sem horizonte que não conduz a nenhum futuro. Vivemos entediados, que é um sentimento que Eduardo Prado Coelho nunca experimentou. Todos os dias ele descobria um novo ensaísta, um novo escritor, um novo poeta, um novo performer. Todos os dia eram, para ele, dia de festa, quer saísse da sua casa do Lumiar ou do Marais, antes de o bairro parisiense se ter tornado um bairro gay.
     Ser absolutamente contemporâneo foi a sua divisa. Era isso que fazia sentido, para ele, antes de um Hal Foster ter começado a falar num “horizonte pós-contemporâneo”. O único “pós” que Eduardo Prado Coelho conheceu e cartografou com grande entusiasmo foi a “pós-modernidade”, da qual hoje já ninguém quer ouvir falar nem ninguém sabe sequer o que é. Tal como não conheceu a “pós-critica”, ele que tinha sido o crítico generoso de uma geração crítica até mais não. 
     Pôde assim manter-se como “crítico” até ter desaparecido prematuramente, sem nunca ter conhecido o destino que, aos críticos nascidos mais tarde, está hoje reservado: o de não terem lugar nem qualquer missão a cumprir porque passaram a ocupar um lugar vazio. Na melhor das hipóteses, e na tentativa de sobreviverem, tornaram-se críticos culturais, entertainers, cronistas de fim-de-semana, cardeais no Vaticano durante a semana e descanso no shabbat das nossas catedrais da opinião e da bienséance. Nesta lista, também estou incluído, seria aliás de uma enorme pretensão subtrair-me a ela. 
     Provavelmente, não estaria aqui se não fosse o Eduardo Prado Coelho, mas enquanto ele teve a felicidade de chegar sempre antecipadamente, eu e todos os que vieram depois já chegámos demasiado tarde. Já não há lugar para ninguém e, no que me diz respeito, só posso considerar-me póstumo, ao contrário de Eduardo Prado Coelho que, tal como o inconsciente do Freud, nunca conheceu a morte. Foi um homem feliz. A essa felicidade, perante a qual me inclino, não tenho o direito.

António Guerreiro, ípsilon, 21.02.2020

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