Não tinha inimigos, não era incomodado por ninguém. Por vezes criava-se uma vasta solidão na minha cabeça onde o mundo inteiro desaparecia, voltando a sair intacto, sem um arranhão, sem nada em falta. Quase perdi a visão quando alguém esmagou vidro nos meus olhos. Reconheço que esse golpe me abalou. Senti que estava a penetrar o muro, a deambular num arbusto de sílex. O pior foi a brusca e chocante crueldade do dia - não podia olhar nem deixar de olhar. Ver era aterrador, deixar de ver dilacerava-me da testa à garganta. Para além disso, ouvia gritos de hiena, o que me expôs à ameaça de um animal selvagem (esses gritos, acredito, eram os meus).
Maurice Blanchot, in "A Loucura do dia" (trad. Ricardo Ribeiro, desenhos de Catarina Domingues), pág. 27, 1ªed., Sr. Teste, 2019
Maurice Blanchot, in "A Loucura do dia" (trad. Ricardo Ribeiro, desenhos de Catarina Domingues), pág. 27, 1ªed., Sr. Teste, 2019
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