17/01/2021


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    Convenhamos que o mundo ficaria bem mais pobre e mais vazio sem o Artista. Nenhuma classe, porém, está entre nós tão desprotegida. É certo que, geralmente depois de morto, o Artista beneficia de certas compensações... é falado, é lido e relido, comentado, antologiado, imitado, entra no património nacional. Donde se poderá então concluir que o costumado confronto com a cigarra é odioso e injusto, que da cigarra pouco fica para o seu semelhante e os vindouros, mas do Artista fica muito em relação do que deixa a maioria dos seus contemporâneos, que é caca. 

    Denunciemos com toda a energia a fórmula, hipócrita e falsamente optimista que 𝑎𝑚𝑎𝑛ℎ𝑎̃ 𝑒́ 𝑑𝑜𝑠 𝑙𝑜𝑢𝑐𝑜𝑠 𝑑𝑒 ℎ𝑜𝑗𝑒 (e, Pessoa, que pôs a correr em verso esse lugar-comum, o exibe melhor que ninguém: o "louco" era ele e os "de juízo", os sensatos espertalhões, é que descobriram 𝑢𝑚𝑎 𝑚𝑖𝑛𝑎 na sua obra). Quando se vê que as videirinhas formigas tomam conta, cedo ou tarde, do canto da cigarra para se alambazarem à sua custa, em boa-fé somos levados a admitir que o canto sempre vale alguma coisa e sendo assim, a própria cigarra, como vivente, vale alguma coisa e justo será que seja ela, antes de ninguém, a lucrar com isso, ao menos para não morrer de fome e frio, tiritando a dançar no Inverno, como quer a fábula. E a formiga, claro!, para seu gozo e proveito.

    Meus Senhores, estimados Amigos, preclaros Confrades: esta situação é ignóbil e ridícula, e para quem a sofre é pior, porque é atroz, inibitória para o Artista, vexatória para a sociedade. Não deve continuar, e tem-se mantido um pouco também por distracção, passividade dos principais interessados. A minha tese é esta: pelo respeito que nos merecem 𝑜𝑠 𝑙𝑜𝑢𝑐𝑜𝑠 𝑑𝑒 𝑜𝑛𝑡𝑒𝑚 temos de ser hoje 𝑡𝑎̃𝑜 𝑙𝑜𝑢𝑐𝑜𝑠 𝑐𝑜𝑚𝑜 𝑒𝑙𝑒𝑠, ou mais, sabido que cada época tem seu tipo e grau de 𝑙𝑜𝑢𝑐𝑢𝑟𝑎 𝑐𝑟𝑖𝑎𝑑𝑜𝑟𝑎, e marcar, desde já, a nossa reserva e o nosso desdém pelos sensatos espertalhões que nos querem comer as papas na cabeça, como parasitas do Artista que são e agem. Que não contem com a nossa cumplicidade! que não apostem na nossa doce aquiescência!... Que não trocem muito e para sempre! do artista, que lhes pode puxar as orelhas em justiceira prosa jocosa. Quando meterem a foice na seara que é nossa, por amor nosso e nosso direito comprado com sangue, serão mordidos, 𝑐𝑎𝑣𝑒 𝑐𝑎𝑛𝑒𝑚! E a tese tem um corolário: melhor é ajudar um artista 𝑛𝑎 𝑑𝑢́𝑣𝑖𝑑𝑎 (de que venha a realizar-se em grandeza, de que prossiga a obra que se propõe) que não apoiar um Artista que fracassará, poderá fracassar, sem esse apoio. No primeiro caso, não se perde grande coisa, fez-se caridade (até porque, como é natural, geralmente apenas lhe demos do nosso supérfluo); no segundo caso... sim, aí a perda foi incalculável. Para o Artista, para nós, para a sociedade. Não acham? E com equívocos destes, alguns fatais, está a História da Arte bem documentada. Entre nós, o mais conhecido e motivo de maior escândalo é Camões, 𝑡𝑎̃𝑜 𝑝𝑜𝑏𝑟𝑒, 𝑡𝑎̃𝑜 𝑝𝑜𝑏𝑟𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑣𝑖𝑣𝑖𝑎 𝑑𝑒 𝑎𝑚𝑖𝑔𝑜𝑠... Uma vergonha nacional.

    Atendo-me à criação literária, onde o meu depoimento pode rechear-se de testemunhos vividos e exemplos significativos, afirmo que esta é, em Portugal, salvo as honrosíssimas excepções da praxe, e são mui poucas, uma farsa e uma fraude pegada. Que sendo entre nós o escritor profissional uma ave rara, ele se encontra sem nenhuma protecção legal ou as que há são tão mesquinhas do ponto de vista prático, que é quase o mesmo. Que se pagam hoje em Portugal quantias irrisórias - por um artigo, um romance, uma tradução, etc., e comparadas com outros salários nos revelam que a profissão do escritor é das que menos garantias oferece, das que menos dinheiro aufere (e o escritor é um bípede que come, que diabo!). A um Amigo meu, muito íntimo, que trabalha há anos (reparem: ℎ𝑎́ 𝑎𝑛𝑜𝑠) e exclusivamente (leram bem? eu disse: 𝑒𝑥𝑐𝑙𝑢𝑠𝑖𝑣𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒) como escritor, perguntava-lhe outro dia o que aconteceria se, longe o agoiro!..., se lhe faltasse de repente a vista, ou o ouvido (ele é crítico musical, e dos mais excelentes, dos mais combativos): qual era o enquadramento de Previdência que lhe daria amparo, o socorria no doença, ou na invalidez, ou na velhice, até numa simples dor de dentes, em suma aquilo de que dispõe, e com todo o direito corporativo e legislação social adequada, um servente de tipografia.

𝑁𝑎̃𝑜 𝑠𝑜𝑢𝑏𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑚𝑒 𝑟𝑒𝑠𝑝𝑜𝑛𝑑𝑒𝑟. 𝐸 𝑒𝑢 𝑎𝑔𝑜𝑟𝑎 𝑔𝑜𝑠𝑡𝑎𝑟𝑖𝑎 𝑞𝑢𝑒 𝐴𝐿𝐺𝑈𝐸́𝑀 𝑚𝑒 𝑓𝑜𝑠𝑠𝑒 𝑐𝑎𝑝𝑎𝑧 𝑑𝑒 𝑟𝑒𝑠𝑝𝑜𝑛𝑑𝑒𝑟 (𝑜𝑢 𝑒𝑥𝑝𝑙𝑖𝑐𝑎𝑟, 𝑠𝑒 𝑎 𝑚𝑖𝑛ℎ𝑎 𝑝𝑒𝑟𝑔𝑢𝑛𝑡𝑎 𝑛𝑎̃𝑜 𝑒𝑟𝑎 𝑎𝑝𝑜𝑑𝑖́𝑐𝑡𝑖𝑐𝑎) 𝑝𝑜𝑟 𝑒𝑥𝑒𝑚𝑝𝑙𝑜, 𝑆. 𝐸𝑥.ª 𝑜 𝑀𝐼𝑁𝐼𝑆𝑇𝑅𝑂 𝐷𝐴𝑆 𝐶𝑂𝑅𝑃𝑂𝑅𝐴𝐶̧𝑂̃𝐸𝑆, 𝑜𝑢 𝑜 𝑚𝑒𝑢 𝑝𝑟𝑒𝑧𝑎𝑑𝑜 𝑑𝑟. 𝑀𝑎𝑛𝑢𝑒𝑙 𝑑𝑎 𝑆𝑖𝑙𝑣𝑎 𝐿𝑒𝑎𝑙, 𝑑𝑎 𝐽𝑢𝑛𝑡𝑎 𝑑𝑒 𝐴𝑐𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑆𝑜𝑐𝑖𝑎𝑙.

    E porquê é uma excepção o escritor profissional neste nosso belo país? por que espírito de resignação, gáudio alvar de analfabetos, se costuma repetir alegremente que aqueles que vivem da pena entre nós se contam pelos dedos duma mão? Mas há algum povo dito civilizado onde isto seja assim?! onde isto pareça coisa fatal e natural, e dizê-lo em voz alta constitua um diagnóstico decente para repetir muitas vezes em público?! Então, não teremos precisão, ou não merecemos, técnicos abalizados da escrita?!... Contentamo-nos toda a vida com curiosos, amadores, jornalistas sabujos, e semi-fradescos retóricos da pluma?! Lembremo-nos, para vergonha nossa, que ainda há meia-dúzia de anos não se podia averbar no Bilhete de Identidade a profissão de 𝑒𝑠𝑐𝑟𝑖𝑡𝑜𝑟, no Arquivo de Identificação de Lisboa 𝑛𝑎̃𝑜 𝑎 𝑐𝑜𝑛ℎ𝑒𝑐𝑖𝑎𝑚!... (Ignoro como ali se processa agora legalmente tal qualificação, mas creio ter ouvido dizer que era por meio de uma declaração da Sociedade Portuguesa de Escritores. Ora valha-nos isso!... que já temos uma instituição que toma medidas importantes e vela pelos interesses do escritor... Mas esta é matéria em que me não quero adiantar, porque poderei estar enganado ou iludido. Se já me disseram que a S.P.E. se tratava de um clube de foliões das letras, divididos por mesquinhas querelas e politiquices internas, e passando o tempo em zaragatas e em beberetes de recepção a estrangeiros!... Mas há gente muito má-língua e não podemos dar ouvidos a tudo: o certo ao certo é que não sei o que lá se passa, moro na Província).

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Luiz Pacheco, in "O Cachecol do Artista", 1ª ed., Contraponto, 1965, Santarém


 

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