18/01/2021

PENSAR A AUSÊNCIA DE AL BERTO
 
    Recordo muitas vezes a inesperada conversa a que assisti, ao longo de um jantar onde éramos numerosos, entre a minha filha Alexandra e o Al Berto. A Alexandra descobrira essa estranha e magoada figura de mulher guerreira que se chamou Isabelle Eberhardt, e o Al Berto conhecia mil pormenores dessa existência misteriosa. Contava-os à Alexandra com a silenciosa alegria de quem abre um continente, inventa um deserto, para dar ao outro, e a Alexandra deixava-se enredar e fascinar, não apenas pelo destino de Isabelle, mas pelo modo como ele se transfigurava nas demoradas palavras com que Al Berto o narrava.
    De súbito, olhando para a cena que se desenhava ao meu lado, eu pude entrever aquilo que confirmei em todas as situações públicas que pude partilhar (lembro-me de Rennes, onde estava também a Maria Gabriela Llansol e o Augusto Joaquim, lembro-me de La Rochelle, lembro-me do último jantar em Paris) com o Al Berto: era o mais delicado dos marginais, o mais profissional dos rebeldes, o mais soberano e leve dos habitantes da noite. Atenção, sublinho um ponto: não, não pensem que o Al Berto era um profissional da rebeldia, como tantos tentam ser, nada disso. Era ao mesmo tempo, contraditoriamente, e de uma forma absoluta e deslumbrantemente livre, rebelde sem concessões e profissional nos compromissos que assumia. Pode-se ser assim, deve-se ser assim: à margem das instituições, e ao mesmo tempo sendo incapaz de fazer esperar duas dúzias de pessoas que o esperavam para o ouvir falar da sua poesia, ou um fotógrafo que houvesse sido encarregado de lhe tirar um retrato para um catálogo.
    Como sempre acontece nestas circunstâncias, a doença apareceu-me como um escândalo absoluto. Por isso não hesito em deixar escrito o lugar-comum: alguém que tanto vivera pelo lado mais fundo e luminoso da vida não podia morrer. Isso, nunca. Eu descobrira aos poucos a sua poesia. De início, por uma indicação de Fernando Assis Pacheco, esse leitor infatigável e de uma agudeza infalível (e poeta, lembram-se?, poeta admirável, que não devemos esquecer). Depois, fui conhecendo o Al Berto em casa de amigos comuns, como o Alexandre Melo ou a Margarida Lages. Fui acompanhando a sua divulgação em França (e a amizade que soube estabelecer com essa dupla extraordinária de entusiastas da poesia portuguesa, que é Sylviane Sambor e Claude Rocquet, o seu editor em L'Escampette). Fui seguindo os convites que ele recebia, dada a forma absolutamente exemplar como se sabia relacionar com as instituições. Fui descobrindo a sua paixão pela pintura. Mais tarde, escrevi sobre a sua poesia final - é espantoso, mas é verdade, como a doença ajuda a encontrar as únicas palavras que nos desfazem por dentro e nos ajudam a sobreviver por fora. Ler os textos últimos do Al Berto é uma experiência maravilhosa.
    Falei há pouco no último jantar em Paris. Foi no final de Fevereiro, princípios de Março, em torno de uma iniciativa organizada com o apoio da Maison de la Poésie e da Casa Fernando Pessoa nos tempos da Manuela Júdice. Quando o vi, quando vi o Al Berto no aeroporto, senti-me roubado naquilo que sempre para mim tinha sido a sua imagem: o rosto de um príncipe. Ele tinha a cabeça rapada e uma espécie de boina. Assim leu os seus poemas no palco da Maison de la Poésie, assim andou pelas ruas de Paris, assim jantou connosco numa noite de muitas histórias e um desmedido riso. E assim se despediu de mim, num optimismo inamovível, sem que eu o pudesse voltar a ver.
     O medo, sabem? Quando a Maria Gabriela e o Augusto chegaram a Rennes, disseram que no comboio tinham falado com o Al Berto sobre o medo. O medo das capas do Al Berto, as suas encenações fotográficas contra o medo. Em torno do medo, como de uma fogueira, estaremos sempre juntos. 
 
Eduardo Prado Coelho, in "Al Quimias. Al Berto - As imagens como desejo de poesia", Centro Cultural Emmerico Nunes, 2001, Sines
 

 

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