22/05/2022


A situação pós-comunista

Uma observação conclusiva sobre a "situação espiritual do tempo" deve evidenciar a perspectiva estratégica característica das exposições seguintes - antigamente, teríamos falado do seu engajamento. Elas colocam-se num debate que movimenta a esfera pública intelectual do Ocidente desde os anos 1990. Para dizer resumidamente, o que está em questão aqui é a interpretação moral e psicopolítica da situação pós-comunista.

A entrada em cena dessa situação apanhou de maneira completamente desprevenida a grande maioria dos contemporâneos de 1990 no seu pensamento político. Por quase toda a parte, os intérpretes políticos do tempo do pós-guerra satisfizeram-se em comentar a situação do mundo, criada pela vitória dos aliados sobre a ditadura nacional-socialista, com os conceitos tradicionais da sua disciplina. Em ampla frente, as pessoas declararam-se partidárias da democracia e da economia de mercado, deixando aos antigos camaradas a parca satisfação de tirar do armário, de tempos a tempos, as suas condecorações antifascistas. Durante essa longa belle époque (assombrada por ameaças nucleares) predominou a opinião de que, com a "eliminação" dos excessos totalitários da Europa, teria sido preenchido o programa do diagnóstico do tempo - de resto, precisaríamos de considerar como é que a civilização liberal, sob o efeito concomitante de correctivos social-democratas, se ateve com os seus meios às requisições históricas por um mundo melhor. Quase ninguém possuía os meios teóricos e os impulsos morais que tornassem possível pensar para além das relações da era bipolar. A implosão do hemisfério ligado ao socialismo real não promoveu apenas o encolhimento e a redução das suas próprias ideologias e aparatos à insignificância. Pelo contrário, também colocou mais ainda o capitalismo "plenamente vitorioso" diante do impasse de precisar de assumir praticamente sozinho a responsabilidade pelo mundo. Não se pode afirmar que os pensadores ocidentais tenham sido provocados por essa situação a encontrar respostas extraordinariamente criativas.

Peter Sloterdijk, in "Ira e Tempo", pág. 52-53, Estação Liberdade, 2012, São Paulo

[sidenote: existe edição em português europeu, com a chancela da Relógio d'Água, mas a escolha da palavra 'cólera' em vez de 'ira' parece-me tão incompreensível que me impede de usufruir dessa tradução. o livro parte da primeira palavra da Ilíada: ira e não cólera, e que é repetidamente revisitada ao longo do livro associada a vários conceitos...]
 

 

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