27/06/2022

O PACIFISMO É A REACÇÃO ERRADA, por Slavoj Žižek (trad. minha)

Para mim, o mega-êxito “Imagine” foi uma canção popular sempre pelas razões erradas. Imaginar que o “mundo viverá em uníssono” é o melhor modo de acabar no inferno.

Aqueles que se agarram ao pacifismo face ao ataque russo à Ucrânia permanecem agarrados à sua própria versão de “Imagine”. Imaginem um mundo em que as tensões já não são resolvidas através de conflitos armados… A Europa persiste neste mundo do “imagine” ignorando a realidade brutal fora das suas fronteiras. É tempo de acordar.

O sonho de uma célere vitória ucraniana, repetição do sonho inicial de uma rápida vitória russa, acabou. No que parece cada vez mais um impasse prolongado, a Rússia progride lentamente, e o seu objectivo final é claro. Já não há qualquer necessidade de ler nas entrelinhas quando Putin se compara com Pedro, o Grande: “Aparentemente, ele estava em guerra com a Suécia colhendo frutos disso… Ele não estava a tirar nada, ele estava a recuperar e a reforçar, era isso que ele estava a fazer… Claramente, recaiu sobre nós a responsabilidade de recuperar e reforçar também.” https://edition.cnn.com/2022/06/10/europe/russia-putin-empire-restoration-endgame-intl-cmd/index.html

Mais do que concentrar em aspectos particulares (está a Rússia somente a recuperar? E o quê?) devemos ler cuidadosamente a justificação principal para a sua afirmação: “Para reclamar qualquer tipo de liderança – nem sequer falo de liderança global, refiro-me a liderança em qualquer área – qualquer país, qualquer povo, qualquer grupo étnico deve assegurar a sua soberania. Porque não há termo intermédio, não há estado intermédio: ou um país é soberano, ou é uma colónia, independentemente do nome que se atribui à colónia.”

O que estas linhas implicam, como um comentador disse, é evidente: há duas categorias de estado: “O soberano e o conquistado. Na visão imperialista de Putin, a Ucrânia deve inserir-se na segunda categoria.” https://edition.cnn.com/2022/06/10/europe/russia-putin-empire-restoration-endgame-intl-cmd/index.html

E, como é não menos evidente pelas declarações oficiais feitas nos últimos meses, a Bósnia e Herzegovina, o Kosovo, a Finlândia, os Estados Bálticos e, por fim, a própria Europa, “caem nessa segunda categoria.”

Agora sabemos o que significa o pedido para permitir que Putin salvasse a sua face. Não significa aceitar um pequeno acordo de cedência territorial no Donbass, mas antes a ambição imperial de Putin. A razão por que esta ambição deve ser rejeitada incondicionalmente é por, neste mundo global hodierno em que todos somos assombrados pelas mesmas catástrofes, estarmos todos no meio termo, num estado intermédio, nem num estado soberano, nem em território conquistado: insistir numa soberania total face ao aquecimento global é pura loucura uma vez que a nossa sobrevivência depende de uma estreita cooperação global.

Mas a Rússia não ignora simplesmente o aquecimento global – porque ficou tão irritada com os países escandinavos quando expressaram a sua intenção de aderir à OTAN? Com o aquecimento global, o que está em jogo é o controlo sobre a passagem do Ártico (por isso Trump queria comprar a Gronelândia à Dinamarca). Com o desenvolvimento explosivo da China, do Japão e da Coreia do Sul, a principal rota de transporte passa a norte da Rússia e da Escandinávia. O plano estratégico da Rússia é lucrar com o aquecimento global: controlar a principal rota comercial, enquanto desenvolve a Sibéria e controla a Ucrânia. Deste modo, a Rússia dominará tanta produção alimentar que será capaz de chantagear o mundo inteiro. É esta a derradeira realidade económica sob o sonho imperial de Putin.

Aqueles que defendem um menor apoio à Ucrânia e maior pressão para que a Ucrânia negocie, incluindo a aceitação de renúncias territoriais dolorosas, gostam de repetir que a Ucrânia simplesmente não pode ganhar a guerra contra a Rússia. É verdade, mas é exactamente nisso que vejo a grandeza da resistência ucraniana: eles arriscaram o impossível, desafiando cálculos pragmáticos, e o mínimo que lhes devemos é apoio total, e, para fazer isto, precisamos de uma OTAN mais forte – mas não como prolongamento de políticas americanas.

A estratégia americana de contra-atacar através da Europa está longe de ser auto-evidente: não é só a Ucrânia, mas a própria Europa que está a tornar-se o local de uma guerra por procuração entre os Estados Unidos e a Rússia, que poderá muito bem terminar com um acordo entre ambos às expensas da Europa. Há somente dois modos de a Europa sair deste lugar: fazer o jogo da neutralidade – um atalho para a catástrofe – ou tornar-se um agente autónomo (pensemos como a situação poderá mudar se Trump vencer as próximas eleições americanas).

Enquanto alguma esquerda afirma que a continuação da guerra é do interesse do complexo industrial/militar da OTAN, que usa a necessidade de novo armamento para evitar crises e conseguir novos lucros, a sua verdadeira mensagem para a Ucrânia é: Sim, vocês são vítimas de uma agressão brutal, mas não contem com as nossas armas porque desse modo estão a colocar-se nas mãos do complexo industrial/militar…

A desorientação causada pela guerra na Ucrânia tem produzido aliados estranhos como Henry Kissinger e Noam Chomsky que vêm de extremos opostos do espectro político – Kissinger serviu como secretário de estado sob a alçada de presidentes republicanos e Chomsky é um dos principais intelectuais de esquerda nos Estados Unidos – e colidiram frequentemente. Mas no que concerne à invasão russa da Ucrânia, ambos recentemente defenderam que a Ucrânia deveria considerar a hipótese de abdicar de algum território para alcançar um acordo de paz mais rápido.

Em suma, ambos professam a mesma versão de “pacifismo” que só resulta se negligenciarmos o facto fundamental de que a guerra não é sobre a Ucrânia, mas um momento de uma tentativa selvagem de mudar toda a nossa situação geopolítica. O verdadeiro alvo da guerra é o desmantelamento da unidade europeia defendida não apenas pelos conservadores americanos e pela Rússia, mas também pelas extremas direita e esquerda europeias – até ao momento, em França, Melenchon meets Le Pen.

A ideia mais louca que circula por estes dias é a de que, para contrapor a nova polaridade entre Estados Unidos e China (que representam os excessos do liberalismo ocidental e do autoritarismo oriental), a Europa e a Rússia deveriam juntar forças e formar um terceiro bloco “eurasiático” baseado no legado cristão purificado dos seus excessos liberais. A própria ideia de uma terceira via “euroasiática” é uma forma de fascismo actual.

Então o que acontecerá quando os votantes na Europa e na América, confrontados com custos crescentes na energia e uma inflação alargada propalada por sanções contra a Rússia, possam perder o apetite para uma guerra que parece não ter fim, com necessidades que só irão aumentar enquanto ambos os lados se dirigem a um impasse prolongado? A resposta é clara: chegados a esse ponto, o legado europeu estará perdido, e a Europa estará efectivamente dividida entre as esferas de influência americana e russa. Resumindo, a própria Europa tornar-se-á o lugar de uma guerra que parece não ter fim…

O que é absolutamente inaceitável para um verdadeiro esquerdista hoje é não só apoiar a Rússia, mas também fazer alegações neutras mais modestas de que a esquerda está dividida entre pacifistas e apoiantes da Ucrânia, e que devemos tratar esta divisão como um facto menor que não deve afectar a luta global da esquerda contra o capitalismo global.

Quando um país é ocupado, é a classe dominante quem é normalmente subornado para colaborar com os ocupantes para manter a sua posição privilegiada, para que a luta contra os ocupantes não se torne uma prioridade. O mesmo pode ser dito quanto à luta contra o racismo; num estado de tensão racial e exploração, o único modo de lutar eficazmente pela classe trabalhadora é manter o foco em combater o racismo (e é por isso que qualquer apelo à classe trabalhadora branca, conforme feito hoje pelo populismo de extrema direita, trai a luta de classes).

Hoje, não pode alguém ser de esquerda se não apoia inequivocamente a Ucrânia. Ser um esquerdista que demonstra compreensão pela Rússia é como ser um desses esquerdistas que, antes da Alemanha ter atacado a União Soviética, levaram a sério a retórica anti-imperialista alemã dirigida ao Reino Unido e professaram a neutralidade na guerra da Alemanha contra a França e o Reino Unido.

Se a esquerda vai falhar aqui, o jogo acabou para a esquerda. Mas significa isto que a Esquerda deve simplesmente tomar o partido do ocidente, incluindo os fundamentalistas de direita que também apoiam a Ucrânia? Num discurso em Dallas, a 18 de maio de 2022, enquanto criticava o sistema político da Rússia, o ex-presidente Bush disse: “O resultado é a ausência de pesos e contrapesos na Rússia, e a decisão de um homem de lançar uma invasão violenta e inteiramente injustificada do Iraque.” Ele corrigiu-se rapidamente: “Quer dizer, da Ucrânia”, dizendo depois “o Iraque, enfim…” provocando o riso da multidão, e acrescentou “75”, referindo-se à sua idade.

Como vários comentadores notaram, duas coisas saltam à vista neste óbvio deslize freudiano: o facto de a assistência ter recebido a confissão implícita de Bush de que a invasão americana do Iraque (por ele ordenada) se tratou de “invasão violenta e inteiramente injustificada” com riso, ao invés de a tratar como uma admissão de um crime comparável ao da invasão russa da Ucrânia; acresce a continuação enigmática de Bush na sua auto-correcção “o Iraque, enfim…” – o que quis ele dizer com aquilo? Que a diferença entre a Ucrânia e o Iraque não tem importância? A referência final à sua idade avançada não afecta em nada este enigma.

Mas o enigma é dissipado a partir do momento em que levamos a sério e à letra a declaração de Bush: sim, tendo em conta todas as diferenças (Zelensky não é um ditador como Saddam), Bush fez o mesmo que Putin faz agora com a Ucrânia, portanto deveriam ser ambos julgados pelos mesmos critérios.

No dia em que escrevo isto, ficamos a saber pelos media que a extradição para os Estados Unidos, do fundador da WikiLeaks, Julian Assange, foi aprovada por Priti Patel, Secretária de Estado para Assuntos Internos do Reino Unido. O seu crime? Nada mais do que tornar públicos os crimes confessados pelo deslize de Bush: os documentos revelados pela WikiLeaks mostraram como, sob a presidência de Bush, os militares americanos mataram centenas de civis em incidentes não reportados durante a guerra no Afeganistão, enquanto os documentos sobre a guerra do Iraque tornados públicos mostraram que 66.000 civis foram mortos, e vários prisioneiros torturados. Crimes inteiramente comparáveis com o que Putin está a fazer na Ucrânia. Em retrospectiva, podemos afirmar que a WikiLeaks revelou dezenas de Buchas e Mariupols imputáveis aos Estados Unidos.

Assim, se levar Bush a tribunal é tão ilusório quanto levar Putin ao tribunal de Haia, o mínimo que deve ser feito por aqueles que se opõem à invasão russa da Ucrânia é exigir a libertação imediata de Assange. A Ucrânia alega lutar pela Europa, e a Rússia alega lutar pelo resto do mundo contra a hegemonia ocidental unipolar. Ambas as alegações devem ser rejeitadas, e aqui a diferença entre esquerda e direita entram em cena.

Do ponto de vista da direita, a Ucrânia luta por valores europeus contra autoritarismos não-europeus; do ponto de vista da esquerda, a Ucrânia luta pela liberdade mundial, incluindo a liberdade dos próprios russos. E é por isso que o coração de cada verdadeiro Russo bate pela Ucrânia.


daqui: https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/jun/21/pacificsm-is-the-wrong-response-to-the-war-in-ukraine?fbclid=IwAR1JumHex23GIUWdFU8xq7CoclHq5iQIp1FStmR_tpdGOIPnv6n1TogMIlI

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