03/01/2023

Discurso proferido por Wisława Szymborska, na cerimónia de entrega do prémio Nobel:

Dizem que a primeira frase de qualquer discurso é sempre a mais difícil. Bom, essa já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que as que estão para vir – a terceira, a sexta, a décima, e por aí fora, até à última linha – serão igualmente difíceis, dado que é suposto falar de poesia. Disse muito pouco sobre o assunto – quase nada, na verdade. E quando disse algo, tive sempre a suspeição de que não sou muito boa nisso. E é por isso que a minha prelecção será bastante breve. A imperfeição é mais fácil de tolerar em pequenas doses.

Os poetas contemporâneos são cépticos e desconfiados até, ou talvez principalmente, em relação a eles mesmos. Só relutantemente confessam publicamente que são poetas, como se tivessem um pouco de vergonha de o ser. Mas nestes tempos clamorosos é muito mais fácil reconhecer as nossas falhas, pelo menos se agrupadas por atracção, do que reconhecer os nossos méritos, dado que estes estão escondidos mais fundo e não acreditamos neles inteiramente. Quando preenchem questionários ou conversam com estranhos – i.e., quando não podem evitar revelar a sua profissão – os poetas preferem usar o termo genérico “escritor” ou substituir “poeta” pelo nome de outra actividade que desenvolvam para lá da escrita. Burocratas e passageiros de autocarro reagem com alguma incredulidade quando descobrem que estão a lidar com um poeta. Suponho que filósofos se deparem com uma reacção parecida. Apesar disso, estão em posição melhor, dado que frequentemente podem embelezar a sua vocação com algum título académico. Professor de filosofia: isso soa muito mais respeitável.

Mas não há professores de poesia. Isso significaria, afinal, que a poesia é uma ocupação que exige estudo especializado, avaliações frequentes, ensaios com bibliografia e notas de rodapé apensas e, por fim, um diploma atribuído cerimoniosamente. E isto significaria, por outro lado, que não bastaria encher páginas mesmo com os mais extraordinários poemas para alguém se tornar poeta. O elemento crucial seria um pedaço de papel oficialmente timbrado. Recordemos que o orgulho da poesia russa, o futuro poeta laureado Joseph Brodsky, foi em tempos condenado ao exílio interno precisamente com base nestes princípios. Chamaram-lhe “um parasita” por não ter um certificado oficial que lhe garantisse o direito a ser poeta.

Há vários anos, tive o prazer e a honra de conhecer Brodsky. E reparei que, de todos os poetas que conheci, ele foi o único que gostava de se dizer poeta. Ele pronunciava a palavra sem inibições. Bem pelo contrário: ele dizia-a com uma liberdade desafiante. Isto sucedia, parece-me, porque ele se lembrava das humilhações brutais por que passou na sua juventude.

Em países mais afortunados, nos quais a dignidade humana não é agredida tão prontamente, os poetas anseiam, obviamente, ser publicados, lidos e compreendidos, mas fazem pouco ou nada para se destacarem do rebanho e da rotina quotidiana. E, contudo, não foi há tanto tempo assim, foi nas primeiras décadas deste século, que os poetas se esforçavam por nos chocar com indumentárias extravagantes e comportamento excêntrico. Mas tudo isto era meramente para consumo público. Chegava sempre o momento em que os poetas tinham de fechar a porta atrás de si mesmos, despir o manto, os adornos e outras parafernálias poéticas, e enfrentar – silenciosa e pacientemente aguardando o seu próprio ser – a folha de papel ainda branca. Porque no fim de contas é isso o que realmente interessa.

Não é por acaso que são produzidos tantos filmes biográficos acerca de grandes cientistas e artistas. Os realizadores mais ambiciosos tentam reproduzir convincentemente o processo criativo que levou a importantes descobertas científicas ou ao surgimento de uma obra-prima. E pode-se representar certo tipo de trabalho científico com algum sucesso. Laboratórios, instrumentos vários, maquinaria elaborada a que é dada vida: cenas desse tipo podem captar a atenção do público durante algum tempo. E esses momentos de incerteza – irá o teste, realizado pela milionésima vez com algumas pequenas modificações, finalmente produzir o resultado desejado? – conseguem ser bastante dramáticos. Filmes sobre pintores podem ser espectaculares, desenvolvem-se em torno das várias fases da evolução de um pintor famoso, da primeira linha feita a lápis até à derradeira pincelada. E a música cresce em filmes sobre compositores: as primeiras notações da melodia que soa no ouvido do músico acabam por emergir como um trabalho maduro na forma de uma sinfonia. Claro que isto é tudo muito inocente e não explica o estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas pelo menos há algo para ver e ouvir.

Mas os poetas são terríveis. O seu trabalho não é nada fotogénico. Alguém que se senta a uma mesa ou se reclina num sofá enquanto, imóvel, fita a parede ou o tecto. De vez em quando essa pessoa anota sete linhas, apenas para riscar uma delas quinze minutos depois, e depois passa mais uma hora durante a qual nada se passa… Quem suportaria observar semelhante coisa?

Eu mencionei a inspiração. Os poetas contemporâneos respondem esquivamente quando lhes perguntam do que se trata, e se existe realmente. Não é que nunca tenham conhecido a benção desse impulso interior. É que não é fácil explicar a outra pessoa aquilo que não se compreende.

Quando, ocasionalmente, me indagam acerca disso, também eu me escudo. Mas a minha resposta é esta: A inspiração não é um privilégio exclusivo de poetas ou artistas. Há, houve, haverá sempre um determinado grupo de pessoas a quem a inspiração visita. Esse grupo é constituído por aqueles que escolheram conscientemente a sua vocação e fazem o seu trabalho com amor e imaginação. Pode incluir médicos, professores, jardineiros – podia listar centenas de profissões. O seu trabalho torna-se uma aventura contínua enquanto conseguirem descobrir novos desafios no mesmo. Dificuldades e contratempos não fazem esmorecer a sua curiosidade. Um enxame de novas questões emerge de cada problema resolvido. O que quer que seja a inspiração, nasce de um contínuo “Não sei”.

Não há muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para se desenrascar. Trabalham porque têm de o fazer. Não escolheram este ou aquele trabalho por paixão; as circunstâncias das suas vidas escolheram por eles. Trabalho sem amor, aborrecido, valorizado apenas porque outros nem isso têm – eis uma das mais duras misérias humanas. E não há sinal algum de que os séculos vindouros venham a produzir quaisquer mudanças para melhor no que a isto diz respeito. E assim, ainda que negue aos poetas o monopólio da inspiração, coloco-os, apesar de tudo, num grupo selecto de amados pela Fortuna.

Chegados a este ponto, no entanto, poderão surgir algumas dúvidas na assistência. Toda a espécie de torturadores, ditadores, fanáticos, e demagogos sedentos de poder com uns quantos slogans gritantes, apreciam também os seus trabalhos, e levam a cabo os seus deveres com fervor inventivo. Bem, é verdade. Mas eles “sabem”, e o que quer que saibam basta-lhes para todo o sempre. Não querem saber de mais nada, dado que isso poderia diminuir a força das suas discussões. Mas qualquer conhecimento que não leve a novas questões rapidamente se esgota: não consegue manter a temperatura necessária à manutenção da vida. Em casos mais extremos, bem conhecidos da história antiga e moderna, constitui mesmo uma ameaça mortal à sociedade.

Por isso tenho em tão alta conta aquela pequena frase “Não sei”. É pequena, mas voa em asas poderosas. Expande as nossas vidas para que inclua espaços dentro de nós bem como planuras externas nas quais a nossa pequena Terra está suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo “Não sei”, as maçãs do seu pequeno pomar talvez tivessem caído ao chão como granizo e, na melhor das hipóteses, ele ter-se-ia dobrado para agarrar uma e comê-la com deleite. Se a minha compatriota Maria Sklodowska-Curie nunca tivesse dito a si mesma “Não sei”, teria provavelmente acabado a leccionar química numa escola privada para raparigas de boas famílias e acabado os seus dias a desempenhar este trabalho inteiramente respeitável. Mas ela continuou a dizer “Não sei” e essas palavras levaram-na, não uma, mas duas vezes a Estocolmo, onde espíritos incansáveis e inquisitivos são ocasionalmente premiados com o Nobel.

Os poetas, se forem genuínos, devem também continuar a repetir “Não sei”. Cada poema assinala uma tentativa de responder a esta afirmação, mas assim que o ponto final bate na página, o poeta começa a hesitr, começa a perceber que esta resposta específica é pura panaceia, completamente inadequada. E por isso os poetas continuam a tentar, e mais cedo ou mais tarde, os resultados sucessivos da sua insatisfação são agrupados com um clip por historiadores da literatura e designados “obras”.

Por vezes sonho com situações que nunca se poderão tornar realidade. Por exemplo, imagino audaciosamente que tenho uma oportunidade de falar com Eclesiastes, o autor daquele lamento comovedor sobre a vaidade de todas as empresas humanas. Curvo-me pronunciadamente diante dele, porque ele é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois agarro a sua mão. “Não há nada de novo debaixo do sol”: foi o que escreveste, Eclesiastes. Mas tu mesmo nasceste novo debaixo do sol. E o poema que criaste também ele é novo debaixo do sol, uma vez que ninguém o escreveu antes de ti. E todos os teu leitores são também novos debaixo do sol, uma vez que aqueles que viveram antes de ti não poderiam ter lido o teu poema. E esse cipreste sob o qual estás sentado não cresceu desde o princípio do tempo. Veio a ser através de outro cipreste semelhante ao teu, mas não exactamente igual.

E, Eclesiastes, gostava também de te perguntar em que nova coisa debaixo do sol tencionas trabalhar agora? Um acrescento a pensamentos que já expressaste? Ou talvez estejas tentado a contradizer alguns agora? No teu trabalho inicial mencionaste a alegria – que importa que seja fugaz? Talvez o teu poema novo debaixo do sol seja acerca da alegria? Já tomaste notas, tens esboços? Duvido que digas: “Já escrevi tudo, nada mais tenho a acrescentar”. Nenhum poeta no mundo pode dizê-lo, muito menos um grande poeta como tu.

O mundo – independentemente do que possamos pensar quando ficamos aterrorizados pela sua vastidão e pela nossa impotência ou quando estamos amargurados com a sua indiferença para com o sofrimento individual de pessoas, animais, e talvez até plantas (porque estamos nós tão certos de que as plantas não sentem dor?); o que quer que possamos pensar das suas planuras perscrutadas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas começamos a descobrir, planetas já mortos, ainda mortos, simplesmente não sabemos; o que quer que possamos pensar acerca deste teatro imensurável para o qual temos bilhetes reservados, mas cuja duração é risivelmente curta, unida como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos mais sobre este mundo – ele é espantoso.

Mas “espantoso” é um epíteto que esconde uma falácia. Ficámos espantados, apesar de tudo, por coisas que se desviam de algumas normas bem conhecidas e reconhecidas universalmente, de uma evidência a que nos acostumamos. Mas a questão é que não existe tal mundo óbvio. O nosso espanto existe per se, não é baseado numa comparação com outra coisa.

É certo que, no discurso coloquial, no qual não paramos para pensar em cada palavra, todos usamos frases como “o mundo normal”, “a vida normal”, “o normal decorrer dos acontecimentos”. Mas na linguagem da poesia, em que cada palavra é pesada, nada é habitual ou normal. Nem uma só pedra nem uma só nuvem sobre esta. Nem um só dia nem uma só noite depois. E acima de tudo, nem uma única existência, nem a existência de ninguém neste mundo.

Parece que os poetas terão sempre o seu trabalho a correr de feição.

 

WISŁAWA SZYMBORSKA

7 de Dezembro de 1996

Estocolmo

 

versão de amadeu liberto fraga a partir do texto fixado no livro "Poems New and Collected", Harvest Book/Harcourt (edição americana que segue inteiramente a da faber & faber), com tradução de Stanisław Barańczak e Clare Cavanagh.  

 

 

 

25/10/2022

 No Capitalism And No Way Out of it Without Science 

To account for the rift between actual life and the life of capital it is not enough to evoke the fact that, in capitalism, the metabolic process between humans and nature is subordinated to the valorization of capital. What made this rift explode was the intimate link between capitalism and modern science: capitalist technology which triggered radical changes in rational environs cannot be imagined without science, which is why some ecologists already proposed to change the term for the new epoch we are entering from Anthropocene to capitalocene. Apparatuses based on science enable humans not only to get to know the real which is outside the scope of their experiential reality (like quantum waves); they also enable them to construct new “unnatural” (inhuman) objects which cannot but appear to our experience as freaks of nature (gadgets, genetically modified organisms, cyborgs, etc.). The power of human culture is not only to build an autonomous symbolic universe beyond what we experience as nature, but to produce new “unnatural” natural objects which materialize human knowledge. We not only “symbolize nature,” we as it were denaturalize it from within.

Today, this denaturalization of nature is openly palpable, part of our daily lives, which is why radical emancipatory politics should aim neither at complete mastery over nature, nor at the humanity’s humble acceptance of the predominance of Mother-Earth. Rather, nature should be exposed in all its catastrophic contingency and indeterminacy, and human agency should assume the whole unpredictability of the consequences of its activity. In spite of the infinite adaptability of capitalism which, in the case of an acute ecological catastrophe or crisis, can easily turn ecology into a new field of capitalist investment and competition, the very nature of the risk involved fundamentally precludes a market solution—why?

Capitalism only works in precise social conditions: it implies trust in the objectivized/“reified” mechanism of the market’s “invisible hand” which, as a kind of Cunning of Reason, guarantees that the competition of individual egotisms works for the common good. However, we are in the midst of a radical change. Until now, historical Substance played its role as the medium and foundation of all subjective interventions: whatever social and political subjects did, it was mediated and ultimately dominated, overdetermined, by the historical Substance. What looms on the horizon today is the unheard-of possibility that a subjective intervention will intervene directly into the historical Substance, catastrophically disturbing its run by way of triggering an ecological catastrophe, a fateful biogenetic mutation, a nuclear or similar military-social catastrophe, etc. No longer can we rely on the safeguarding role of the limited scope of our acts: it no longer holds that, whatever we do, history will go on. For the first time in human history, the act of a single sociopolitical agent effectively can alter and even interrupt the global historical process, so that, ironically, it is only today that we can say that the historical process should effectively be conceived “not only as Substance, but also as Subject.”


Slavoj Žižek, in "Surplus Enjoyment. A guide for the non-perplexed", pág. 71-72, 1ª ed., Bloomsbury, 2022

 


 

20/07/2022

 
            Dignitas Hominis
 
            Hoje devemos falar de um tópico que o pensamento
            do nosso século em recusa tanto
            amplamente revisitou: dignitas
            hominis, indignitas hominis, guerra
            mundial de nossos pais crianças.
            Mas evitar Malraux, e resistir
            a Marcel e Du Noüy. Convém sempre
            tematizar a dignidade humana, sob pena
            de se cair no abismo da poesia impura
            mente pura ou mera arte
            de joalharia verbal. Da indignidade
            humana também é dever falar, por cénica função
            de contraste e pedagogia. Dignificar
            a poesia, narrativa humana. E é de esquecer
            aquele Nietzsche para quem o humano
            pode tornar-se assim demasiado humano.
            Falemos de um tópico que o pensamento etc.
 
            Luís Adriano Carlos, in "Livro de Receitas", pág. 27, 1ª ed., Campo das Letras, Porto, 2000
 

 

15/07/2022

            O nível e o espaço, o firmamento
            desaguando em nós, que somos água,
            tão repentino vício de morrer,
            acesso de cratera e interstício.
            O nível da visão, o cruzamento
            invariável de sossego e dor,
            oh cristalina superfície, rasa
            inspiração de espaço, vício de água
            em místicas passagens. Repentinas
            figuras que um axioma delimita.
 
            Luís (F.) Adriano Carlos, in "Invenção do Problema", pág. 33, 1ª ed., Moraes Editores, Lisboa, 1986
 

 

27/06/2022

O PACIFISMO É A REACÇÃO ERRADA, por Slavoj Žižek (trad. minha)

Para mim, o mega-êxito “Imagine” foi uma canção popular sempre pelas razões erradas. Imaginar que o “mundo viverá em uníssono” é o melhor modo de acabar no inferno.

Aqueles que se agarram ao pacifismo face ao ataque russo à Ucrânia permanecem agarrados à sua própria versão de “Imagine”. Imaginem um mundo em que as tensões já não são resolvidas através de conflitos armados… A Europa persiste neste mundo do “imagine” ignorando a realidade brutal fora das suas fronteiras. É tempo de acordar.

O sonho de uma célere vitória ucraniana, repetição do sonho inicial de uma rápida vitória russa, acabou. No que parece cada vez mais um impasse prolongado, a Rússia progride lentamente, e o seu objectivo final é claro. Já não há qualquer necessidade de ler nas entrelinhas quando Putin se compara com Pedro, o Grande: “Aparentemente, ele estava em guerra com a Suécia colhendo frutos disso… Ele não estava a tirar nada, ele estava a recuperar e a reforçar, era isso que ele estava a fazer… Claramente, recaiu sobre nós a responsabilidade de recuperar e reforçar também.” https://edition.cnn.com/2022/06/10/europe/russia-putin-empire-restoration-endgame-intl-cmd/index.html

Mais do que concentrar em aspectos particulares (está a Rússia somente a recuperar? E o quê?) devemos ler cuidadosamente a justificação principal para a sua afirmação: “Para reclamar qualquer tipo de liderança – nem sequer falo de liderança global, refiro-me a liderança em qualquer área – qualquer país, qualquer povo, qualquer grupo étnico deve assegurar a sua soberania. Porque não há termo intermédio, não há estado intermédio: ou um país é soberano, ou é uma colónia, independentemente do nome que se atribui à colónia.”

O que estas linhas implicam, como um comentador disse, é evidente: há duas categorias de estado: “O soberano e o conquistado. Na visão imperialista de Putin, a Ucrânia deve inserir-se na segunda categoria.” https://edition.cnn.com/2022/06/10/europe/russia-putin-empire-restoration-endgame-intl-cmd/index.html

E, como é não menos evidente pelas declarações oficiais feitas nos últimos meses, a Bósnia e Herzegovina, o Kosovo, a Finlândia, os Estados Bálticos e, por fim, a própria Europa, “caem nessa segunda categoria.”

Agora sabemos o que significa o pedido para permitir que Putin salvasse a sua face. Não significa aceitar um pequeno acordo de cedência territorial no Donbass, mas antes a ambição imperial de Putin. A razão por que esta ambição deve ser rejeitada incondicionalmente é por, neste mundo global hodierno em que todos somos assombrados pelas mesmas catástrofes, estarmos todos no meio termo, num estado intermédio, nem num estado soberano, nem em território conquistado: insistir numa soberania total face ao aquecimento global é pura loucura uma vez que a nossa sobrevivência depende de uma estreita cooperação global.

Mas a Rússia não ignora simplesmente o aquecimento global – porque ficou tão irritada com os países escandinavos quando expressaram a sua intenção de aderir à OTAN? Com o aquecimento global, o que está em jogo é o controlo sobre a passagem do Ártico (por isso Trump queria comprar a Gronelândia à Dinamarca). Com o desenvolvimento explosivo da China, do Japão e da Coreia do Sul, a principal rota de transporte passa a norte da Rússia e da Escandinávia. O plano estratégico da Rússia é lucrar com o aquecimento global: controlar a principal rota comercial, enquanto desenvolve a Sibéria e controla a Ucrânia. Deste modo, a Rússia dominará tanta produção alimentar que será capaz de chantagear o mundo inteiro. É esta a derradeira realidade económica sob o sonho imperial de Putin.

Aqueles que defendem um menor apoio à Ucrânia e maior pressão para que a Ucrânia negocie, incluindo a aceitação de renúncias territoriais dolorosas, gostam de repetir que a Ucrânia simplesmente não pode ganhar a guerra contra a Rússia. É verdade, mas é exactamente nisso que vejo a grandeza da resistência ucraniana: eles arriscaram o impossível, desafiando cálculos pragmáticos, e o mínimo que lhes devemos é apoio total, e, para fazer isto, precisamos de uma OTAN mais forte – mas não como prolongamento de políticas americanas.

A estratégia americana de contra-atacar através da Europa está longe de ser auto-evidente: não é só a Ucrânia, mas a própria Europa que está a tornar-se o local de uma guerra por procuração entre os Estados Unidos e a Rússia, que poderá muito bem terminar com um acordo entre ambos às expensas da Europa. Há somente dois modos de a Europa sair deste lugar: fazer o jogo da neutralidade – um atalho para a catástrofe – ou tornar-se um agente autónomo (pensemos como a situação poderá mudar se Trump vencer as próximas eleições americanas).

Enquanto alguma esquerda afirma que a continuação da guerra é do interesse do complexo industrial/militar da OTAN, que usa a necessidade de novo armamento para evitar crises e conseguir novos lucros, a sua verdadeira mensagem para a Ucrânia é: Sim, vocês são vítimas de uma agressão brutal, mas não contem com as nossas armas porque desse modo estão a colocar-se nas mãos do complexo industrial/militar…

A desorientação causada pela guerra na Ucrânia tem produzido aliados estranhos como Henry Kissinger e Noam Chomsky que vêm de extremos opostos do espectro político – Kissinger serviu como secretário de estado sob a alçada de presidentes republicanos e Chomsky é um dos principais intelectuais de esquerda nos Estados Unidos – e colidiram frequentemente. Mas no que concerne à invasão russa da Ucrânia, ambos recentemente defenderam que a Ucrânia deveria considerar a hipótese de abdicar de algum território para alcançar um acordo de paz mais rápido.

Em suma, ambos professam a mesma versão de “pacifismo” que só resulta se negligenciarmos o facto fundamental de que a guerra não é sobre a Ucrânia, mas um momento de uma tentativa selvagem de mudar toda a nossa situação geopolítica. O verdadeiro alvo da guerra é o desmantelamento da unidade europeia defendida não apenas pelos conservadores americanos e pela Rússia, mas também pelas extremas direita e esquerda europeias – até ao momento, em França, Melenchon meets Le Pen.

A ideia mais louca que circula por estes dias é a de que, para contrapor a nova polaridade entre Estados Unidos e China (que representam os excessos do liberalismo ocidental e do autoritarismo oriental), a Europa e a Rússia deveriam juntar forças e formar um terceiro bloco “eurasiático” baseado no legado cristão purificado dos seus excessos liberais. A própria ideia de uma terceira via “euroasiática” é uma forma de fascismo actual.

Então o que acontecerá quando os votantes na Europa e na América, confrontados com custos crescentes na energia e uma inflação alargada propalada por sanções contra a Rússia, possam perder o apetite para uma guerra que parece não ter fim, com necessidades que só irão aumentar enquanto ambos os lados se dirigem a um impasse prolongado? A resposta é clara: chegados a esse ponto, o legado europeu estará perdido, e a Europa estará efectivamente dividida entre as esferas de influência americana e russa. Resumindo, a própria Europa tornar-se-á o lugar de uma guerra que parece não ter fim…

O que é absolutamente inaceitável para um verdadeiro esquerdista hoje é não só apoiar a Rússia, mas também fazer alegações neutras mais modestas de que a esquerda está dividida entre pacifistas e apoiantes da Ucrânia, e que devemos tratar esta divisão como um facto menor que não deve afectar a luta global da esquerda contra o capitalismo global.

Quando um país é ocupado, é a classe dominante quem é normalmente subornado para colaborar com os ocupantes para manter a sua posição privilegiada, para que a luta contra os ocupantes não se torne uma prioridade. O mesmo pode ser dito quanto à luta contra o racismo; num estado de tensão racial e exploração, o único modo de lutar eficazmente pela classe trabalhadora é manter o foco em combater o racismo (e é por isso que qualquer apelo à classe trabalhadora branca, conforme feito hoje pelo populismo de extrema direita, trai a luta de classes).

Hoje, não pode alguém ser de esquerda se não apoia inequivocamente a Ucrânia. Ser um esquerdista que demonstra compreensão pela Rússia é como ser um desses esquerdistas que, antes da Alemanha ter atacado a União Soviética, levaram a sério a retórica anti-imperialista alemã dirigida ao Reino Unido e professaram a neutralidade na guerra da Alemanha contra a França e o Reino Unido.

Se a esquerda vai falhar aqui, o jogo acabou para a esquerda. Mas significa isto que a Esquerda deve simplesmente tomar o partido do ocidente, incluindo os fundamentalistas de direita que também apoiam a Ucrânia? Num discurso em Dallas, a 18 de maio de 2022, enquanto criticava o sistema político da Rússia, o ex-presidente Bush disse: “O resultado é a ausência de pesos e contrapesos na Rússia, e a decisão de um homem de lançar uma invasão violenta e inteiramente injustificada do Iraque.” Ele corrigiu-se rapidamente: “Quer dizer, da Ucrânia”, dizendo depois “o Iraque, enfim…” provocando o riso da multidão, e acrescentou “75”, referindo-se à sua idade.

Como vários comentadores notaram, duas coisas saltam à vista neste óbvio deslize freudiano: o facto de a assistência ter recebido a confissão implícita de Bush de que a invasão americana do Iraque (por ele ordenada) se tratou de “invasão violenta e inteiramente injustificada” com riso, ao invés de a tratar como uma admissão de um crime comparável ao da invasão russa da Ucrânia; acresce a continuação enigmática de Bush na sua auto-correcção “o Iraque, enfim…” – o que quis ele dizer com aquilo? Que a diferença entre a Ucrânia e o Iraque não tem importância? A referência final à sua idade avançada não afecta em nada este enigma.

Mas o enigma é dissipado a partir do momento em que levamos a sério e à letra a declaração de Bush: sim, tendo em conta todas as diferenças (Zelensky não é um ditador como Saddam), Bush fez o mesmo que Putin faz agora com a Ucrânia, portanto deveriam ser ambos julgados pelos mesmos critérios.

No dia em que escrevo isto, ficamos a saber pelos media que a extradição para os Estados Unidos, do fundador da WikiLeaks, Julian Assange, foi aprovada por Priti Patel, Secretária de Estado para Assuntos Internos do Reino Unido. O seu crime? Nada mais do que tornar públicos os crimes confessados pelo deslize de Bush: os documentos revelados pela WikiLeaks mostraram como, sob a presidência de Bush, os militares americanos mataram centenas de civis em incidentes não reportados durante a guerra no Afeganistão, enquanto os documentos sobre a guerra do Iraque tornados públicos mostraram que 66.000 civis foram mortos, e vários prisioneiros torturados. Crimes inteiramente comparáveis com o que Putin está a fazer na Ucrânia. Em retrospectiva, podemos afirmar que a WikiLeaks revelou dezenas de Buchas e Mariupols imputáveis aos Estados Unidos.

Assim, se levar Bush a tribunal é tão ilusório quanto levar Putin ao tribunal de Haia, o mínimo que deve ser feito por aqueles que se opõem à invasão russa da Ucrânia é exigir a libertação imediata de Assange. A Ucrânia alega lutar pela Europa, e a Rússia alega lutar pelo resto do mundo contra a hegemonia ocidental unipolar. Ambas as alegações devem ser rejeitadas, e aqui a diferença entre esquerda e direita entram em cena.

Do ponto de vista da direita, a Ucrânia luta por valores europeus contra autoritarismos não-europeus; do ponto de vista da esquerda, a Ucrânia luta pela liberdade mundial, incluindo a liberdade dos próprios russos. E é por isso que o coração de cada verdadeiro Russo bate pela Ucrânia.


daqui: https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/jun/21/pacificsm-is-the-wrong-response-to-the-war-in-ukraine?fbclid=IwAR1JumHex23GIUWdFU8xq7CoclHq5iQIp1FStmR_tpdGOIPnv6n1TogMIlI

22/05/2022


A situação pós-comunista

Uma observação conclusiva sobre a "situação espiritual do tempo" deve evidenciar a perspectiva estratégica característica das exposições seguintes - antigamente, teríamos falado do seu engajamento. Elas colocam-se num debate que movimenta a esfera pública intelectual do Ocidente desde os anos 1990. Para dizer resumidamente, o que está em questão aqui é a interpretação moral e psicopolítica da situação pós-comunista.

A entrada em cena dessa situação apanhou de maneira completamente desprevenida a grande maioria dos contemporâneos de 1990 no seu pensamento político. Por quase toda a parte, os intérpretes políticos do tempo do pós-guerra satisfizeram-se em comentar a situação do mundo, criada pela vitória dos aliados sobre a ditadura nacional-socialista, com os conceitos tradicionais da sua disciplina. Em ampla frente, as pessoas declararam-se partidárias da democracia e da economia de mercado, deixando aos antigos camaradas a parca satisfação de tirar do armário, de tempos a tempos, as suas condecorações antifascistas. Durante essa longa belle époque (assombrada por ameaças nucleares) predominou a opinião de que, com a "eliminação" dos excessos totalitários da Europa, teria sido preenchido o programa do diagnóstico do tempo - de resto, precisaríamos de considerar como é que a civilização liberal, sob o efeito concomitante de correctivos social-democratas, se ateve com os seus meios às requisições históricas por um mundo melhor. Quase ninguém possuía os meios teóricos e os impulsos morais que tornassem possível pensar para além das relações da era bipolar. A implosão do hemisfério ligado ao socialismo real não promoveu apenas o encolhimento e a redução das suas próprias ideologias e aparatos à insignificância. Pelo contrário, também colocou mais ainda o capitalismo "plenamente vitorioso" diante do impasse de precisar de assumir praticamente sozinho a responsabilidade pelo mundo. Não se pode afirmar que os pensadores ocidentais tenham sido provocados por essa situação a encontrar respostas extraordinariamente criativas.

Peter Sloterdijk, in "Ira e Tempo", pág. 52-53, Estação Liberdade, 2012, São Paulo

[sidenote: existe edição em português europeu, com a chancela da Relógio d'Água, mas a escolha da palavra 'cólera' em vez de 'ira' parece-me tão incompreensível que me impede de usufruir dessa tradução. o livro parte da primeira palavra da Ilíada: ira e não cólera, e que é repetidamente revisitada ao longo do livro associada a vários conceitos...]
 

 

26/03/2022

 

La terreur n’est pas une caractéristique facultative des États totalitaires, elle fait partie de leur fondement même. C’est pourquoi il est vain de vouloir étudier ces États, comme l’ont fait diverses écoles «révisionnistes», sans en tenir compte, comme s’il s’agissait de sociétés animées par les conflits et les tensions classiques. On l’a bien vu en 1989: dès que la terreur a été suspendue (la police et l’armée n’avaient pas reçu l’ordre de tirer sur les manifestants), les États totalitaires communistes se sont écroulés comme un château de cartes.

 

Au-delà des frontières, la terreur retrouve le visage plus familier de la guerre (ou, en position de repli, de la guerre froide); les pactes sont forcément provisoires. Le but est toujours la domination; les moyens sont adaptés aux circonstances du moment. En fin de compte, la violence reçoit, dans le cadre totalitaire, une légitimation multiple. Elle est d’abord la loi de vie et de survie; mais elle convient, en outre, à celui qui possède la vérité scientifique: à quoi bon s’embarrasser de discussions quand on sait où il faut aller et ce qu’il faut faire?


La division de l’humanité en deux parties mutuellement exclusives est essentielle pour les doctrines totalitaires. Il n’y a pas de place ici pour les positions neutres; toute personne tiède est un adversaire, tout adversaire un ennemi. Réduisant la différence à l’opposition et cherchant ensuite à éliminer ceux qui l’incarnent, le totalitarisme nie radicalement l’altérité, c’est-à-dire l’existence d’un tu à la fois comparable au je, voire interchangeable avec lui, et qui pourtant reste irréductiblement distinct de lui. On tient là une définition de la pensée totalitaire, laquelle est beaucoup plus répandue que les États totalitaires: c’est celle qui ne laisse aucune place légitime à l’altérité et à la pluralité.

 

Son emblème pourrait être cette perle de Simone de Beauvoir, qu’on ne se lassera pas de citer : «La vérité est une, l’erreur est multiple. Ce n’est pas un hasard si la droite professe le pluralisme.» On ne dira pas pour autant, imitant son esprit, que la gauche est nécessairement totalitaire; c’est plutôt que, dans la pensée qu’illustre cette phrase, les principes de la guerre se trouvent étendus à la vie civile; l’ennemi de l’intérieur ne mérite pas moins la mort que celui du dehors. En ce sens, le totalitarisme est hostile à l’universalisme qui cultive, au contraire, l’idéal de paix.


Tzvetan Todorov, in "Mémoire du Mal, Tentation du Bien", pp. 35-36, Robert Laffont, 2000

 


 

23/03/2022



O mês de março vem ver como é e toca em tudo, e as montanhas descem pela tarde íngreme, nos espelhos tu serás daqui em diante todo o meu braço esquerdo, porque eu vou levantar voo com o braço direito na camisa demasiado azul, meu amor a espuma é uma pressa das águas que chegam à alvorada, nascidas num centro nocturno onde os animais estremecem e dormem - nunca mais terei sono, vou despir-te tão lentamente quanto se tece uma estação, e arderá nos meus dedos uma doçura negra, só depois eu saberei como é leve toda essa roupa exaltada, na atmosfera que treme dás um passo com os teus cabelos, e a paisagem ergue-se e respira, com a cor toda na voz procuro o nosso silêncio, como tu és uma criança passa a sombra do vento, e passa porque estás nua uma vertigem de sal, e ouve: o teu país é pimenta, e então é a noite pintada ao fundo e a lua senta-se, meu amor como um cardume livremente branco, e olhar é um modo de crescer em silêncio, respiras elevada até ser teu corpo um grande pensamento, e tudo se cala para termos muitas mãos por onde compreender, o mês de março está no meio e não se move, sentimos apenas os seus pulmões ardentes na matéria delicada que ferve atrás dos séculos.
 
Herberto Helder, in "Vocação Animal", pp. 23-24, 1ª ed. e única, publicações D. Quixote, maio de 1971
 

 

16/03/2022





CONFRONTS

Dans le juste milieu de la roche et du sable de l’eau et
du feu des cris et du silence universels
Parfait comme l’or
Le spectacle de ciment de la Beauté clouée
Chantage

Dehors
La terre s’ouvre
L’homme est tué
L’air se referme

Les notions de l’indépendance sucrent au goût des
oppresseurs le sang des opprimés
Les fainéants crépitent avec les flammes du bûcher
C’est la transmutation des richesses harmonieuses
Le langage des porteurs de scapulaire : «Au crépuscule
À l’heure où les poissons viennent en troupeau
Respirer à la surface de la mer
Invariablement
La main à cinq hameçons
La main divine
Cueille le fruit du sel»

Hypothétique lecteur
Mon confident désœuvré
Qui a partagé ma panique
Quand la bêche s’est refusée à mordre le lin
Puisse un mirage d’abreuvoirs sur l’atlas des déserts
Aggraver ton désir de prendre congé
Les vivants parlent aux morts de médecine salvatrice
de tireur de hasard à la roue de la raison
Les armées solides sont liquides après la chimie des oiseaux
Les yeux les moins avides embrassent à la fois le panorama et les ressources de l’île
Plante souple dans un sol rude

Mais voici le progrès

Les mondes en transformation appartiennent aux poètes carnassiers,
Les distractions meurtrières aux rêveurs qui les imaginent
À l’esprit de fonder le pessimisme en dormant
Au temps de la jeunesse du corps
Pour voir grandir
La chair flexible et douce
Au-dessus des couleurs
À travers les cristaux des consciences inflexibles
Au chevet de la violence dilapidée
Dans l’animation de l’amour
Lorsqu’elle passera devant le soleil
Peut-être le dernier simple incarnera la lumière.

René Char, "Le Marteau sains maître / Poèmes Militants", in pág. 38-39, Œ𝘶𝘷𝘳𝘦𝘴 𝐶𝑜𝑚𝑝𝑙è𝑡𝑒𝑠, 1988 (reimpressão), Gallimard, França

 


 

12/03/2022

                de Arseny Tarkovsky, um poema do 'Caderno de Chistopol'

                Outrora, uma casa erguia-se aqui. No seu interior, um velho
                vivia com uma criança. E agora a casa não existe.

                Uma bomba de cem quilogramas – a terra, mais escura que breu.
                Uma casa, agora nada. É isso a guerra; o que pode ser feito?

                Sobre um monte de trapos cinzentos, um samovar cintila.
                Um aparador, perto de um cavalo. Por cima do cavalo, vapor.

                Ao longo da parede desabada, algumas urtigas crescerão.
                Os desgraçados fantasmas da guerra terão, aqui mesmo, casa

                para sempre. Sem eles, quem gemeria à noite,
                quem se contorceria e assobiaria em fornos frios?
 

                1942


versão minha, a partir de "I Burned at the Feast" (trad. Philip Metres & Dimitri Psurtsev), pág. 37, Cleveland State University Poetry Center, 2015


 

24/02/2022


- Não há dúvida nenhuma de que, quanto às campanhas e aos perigos, partilhava deles com todos os camaradas... Oh, meu Deus, que belas horas vivia a nossa Ucrânia!
 

- Era terrível! — suspirou Ana Mikhaïlovna.

 

- Era esplêndido! — ripostou o jovem visionário.
 

- Agora nada resta! — declarou Piotr num tom decisivo, aproximando-se do lado da carruagem. Alteando as sobrancelhas e aplicando o ouvido ao passo dos cavalos vizinhos, obrigou o seu a regular-se pela caleche. —Tudo agora desapareceu — repetiu ele.

 

- O que foi condenado a desaparecer desapareceu — declarou o tio Maksim, num tom estranhamente frio. — Eles viviam à sua maneira, vós viveis à vossa, eis tudo.
 

- O senhor não se arrisca a nada agora — respondeu o estudante. Já tomou da vida tudo o que ela lhe podia dar. Nós é outra coisa.

- É bem verdade, a vida deu-me tudo e tudo me tirou — disse, sarcástico, o velho garibaldino, olhando as muletas. E depois de um curto silêncio acrescentou: - Há muito tempo também eu aspirava a tomar parte em batalhas, sonhava com a poesia furiosa das lutas e com a liberdade completa do espírito... Parti mesmo para a Turquia, onde Tchaikovsky, nosso compatriota, queria organizar um estado cossaco, completamente independente...

 

- E depois? — perguntaram vivamente os rapazes.

 
- Depois... curei-me, e bem depressa. Curei-me desde que vi os «livres cossacos» servir o despotismo turco. Uma mascarada histórica e uma escroquerie política foi tudo o que verifiquei. 


Vladimir Korolenko, in "O Músico Cego", pág. 148-49, Publicações Europa-América, 1971



23/02/2022


We have the “technocratic” vision of Europe as another efficient actor in global capitalism, we have the liberal vision of Europe as the pre-eminent space of human rights and freedoms, and we have the conservative vision of Europe as a union of strong national identities. How to orient ourselves in this mess? It is all too easy to distinguish between the different aspects of Europe, the good and the bad, adopting a stance wherein we reject the Europe which gave birth to modern colonialism, racism, and slavery, but we support the Europe of human rights and multicultural openness. Such a solution recalls an American politician from the era of prohibition who, when asked where he stands on drinking wine, replies: “If you mean by wine the drink which makes an evening with friends so wonderful, I am all for it, but if you mean by wine the horror which induces family violence and makes people jobless and degenerate, I am totally opposed to it!” Yes, Europe is a complex notion full of inner tensions, but we have to make a clear and simple decision: can “Europe” still serve as what Jacques Lacan called a Master-Signifier, as one of the names that symbolizes what the struggle for emancipation stands for?


My thesis is that it is precisely now, when Europe is in decline and the attacks on its legacy are at their strongest, that one should decide for Europe. The predominant target of these attacks is not Europe’s racist or conservative legacies, but the emancipatory potential that is unique to Europe: secular modernity, Enlightenment, human rights and freedoms, social solidarity and justice, feminism. . . The reason we should stick with the name “Europe” is not only because good features prevail over bad; the main reason is that the European legacy itself provides the best critical instruments with which to analyze what went wrong in Europe. Are those who oppose “Eurocentrism” aware that the very terms they use in their critique are part of European legacy?

 

Obviously, the most visible threat to this emancipatory potential comes from within, from the new Right populism which aims at destroying the European emancipatory legacy. The Right’s Europe is a Europe of nation-states bent on preserving their particular identity. When Steve Bannon visited France a couple of years ago, he made a speech which finished with the words: “God bless America and Vive la France!, Vive la France, viva Italia, long live Germany. . . but not Europe. We should be attentive to how this vision of Europe implies a totally different mapping of our political space.


In his Notes Towards the Definition of Culture, the great conservative T. S. Eliot remarked that there are moments when the only choice is the one between sectarianism and non-belief, when the only way to keep religion alive is to perform a sectarian split from its main corpse. This is our only choice today: only by means of a “sectarian split” from the standard liberal-democratic version of the European legacy, only by cutting ourselves off from the decaying corpse of the old Europe, can we keep the European legacy alive. To act on a global scale that is not focused on Europe—for instance in helping India and others with vaccines, mobilizing internationally against global warming, and organizing global health care—is the only way to be a true European today.


Slavoj Žižek, "A European Manifesto", in Heaven in Disorder, pág. 173-75, OR Books, Dez. 2021