ontem, trinta e um de outubro, vi muita gente mascarada a passear pela
cidade, e estou certo de que muita gente preferiu a travessura à doçura.
a maquilhagem, essa, pode remover-se, mas algumas máscaras - como a do
cavaco - já caíram há muito e não há maquilhagem que o esconda da noite
das bruxas em que se tornou a nossa mui nobre classe política. tive,
assumo, esperança que algum culto satânico se desse ao trabalho de
esfolar o coelho-mor, mas parece que o cara de broche vai
continuar a chupar nas cenouras dos outros.
hoje, primeiro de novembro,
vi senhoras e cavalheiros atropelando-se para chegarem primeiro às
flores que logo abandonarão na lápide que raramente visitam: é preciso
cuidado, o hábito faria o monge. o halloween, de tão
português, foi importado dos estados unidos, lá aterrado talvez durante o romantismo e vindo de europas outras - onde serve para abafar o
feriado mexicano dos mortos: para esse latinos vestir-se para vir à rua
em parada e dançar, é expiar os seus demónios uma vez no ano. lavam a
alma e retomam o seu quotidiano, como nenhum pilatos português pode já
fazer.
esta parada, por metonímia, pode também corresponder a uma
transmigração das almas que me leva para uma outra viagem: brittany
maynard, americana, vinte e nove anos, não chegará à minha idade.
mudou-se de san francisco - no flowers in her hair - para o oregon,
estado que lhe permitirá pôr termo à sua vida. brittany tem um cancro em
estado terminal e percebeu que less is more. decidiu viver em
qualidade os últimos dias e tentar mudar mentalidades. hoje é o dia dos
finados, mas é também o dia depois do aniversário do marido de brittany,
dan diaz. primeiro de novembro, o último de brittany. penso no fuso
horário e sinto-me absurdo: não é tarde, é cedo... e ainda assim, talvez
os tempos verbais estejam todos errados. talvez brittany já tenha
partido.
já não sei o que é a solidão, não posso saber: neste momento,
seria, suponho, alguém a olhar para a combinação de pharmakoi que porá
fim ao seu respirar. o cavaco, o coelho, a síria, os curdos, a malala,
hoje, ficam um pouco lá atrás, ruído de fundo que retomarei dentro de
algumas horas. pergunto-me se aquele casal celebrou o aniversário dele,
se perceberam que o halloween nunca mais será a mesma coisa para quem os
ama, pois juntaram, na memória dessas pessoas, vida e morte. sinto,
sim, sinto que me torno aos poucos um voyeur vicioso e percebo que está
na hora de dar este texto por finado. se hoje me saísse um poema, seria
sobre e para brittany e dan. mas não me sinto capaz.
amadeu liberto fraga
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