- o programa retomará dentro de breves instantes -
os dias dão-nos aquele deslumbramento de caos quando, na verdade, sob a
névoa da casualidade se esconde a agenda de alguém. pode levar anos, mas
acabamos por conhecer uma pessoa. no palco da vida recebemos muitas
palmadas no ombro, muitos parabéns, muitos abraços e outros apontamentos
de um suposto carinho. à medida que a inocência nos vai deixando,
porém, passamos a reconhecer certo tipo de olhar, alguma forma de
comprometimento surpreendido. e, a partir daí, não há lágrima de
crocodilo que nos convença. e, do já gasto “também tu, brutus?”,
ascendemos a um outro grau de (re)conhecimento: aquele que nos faz
distinguir uma pessoa de um ser humano. explico. uma pessoa está na
ordem do vulgar, do sujo, do mais baixo que o terreno pode ser; um ser
humano é aquele que, como Mishima pretendia, se mantém limpo apesar de
se sujar no mundo. assim me entenderão melhor se disser que tenho
conhecido muitas pessoas, mas poucos seres humanos. se alguns ainda se
deixam levar por teses naturalistas, acreditando que um passado mal
passado possa justificar o presente, eu já não posso permitir-me seguir
nessa corrente: nada justifica uma continuada e propositada encenação a
duas faces.
há dias tive o prazer da visita, na livraria onde trabalho, de um poeta que admiro. falamos de Herberto e da sujidade na literatura. daí, contudo, fizemos um “idem” para a vida: “É importante manter uma inocência”, disse-me ele, com ênfase em “uma”. não retive, despreparado que sou, todo o seu léxico, toda a profusão imagética ou a amplitude de signos com que me banhou, mas a sua forma de ver o mundo, com algo de Lévinas, deixou-me com a imagem do ser humano: aquele que caminha cercado de uma névoa que, ao invés de o esconder, revela a sua luz interior. falou-me com amizade, bafejando-me com o seu fôlego pulsante, e eu senti-me um pouco menos sujo.
há dias tive o prazer da visita, na livraria onde trabalho, de um poeta que admiro. falamos de Herberto e da sujidade na literatura. daí, contudo, fizemos um “idem” para a vida: “É importante manter uma inocência”, disse-me ele, com ênfase em “uma”. não retive, despreparado que sou, todo o seu léxico, toda a profusão imagética ou a amplitude de signos com que me banhou, mas a sua forma de ver o mundo, com algo de Lévinas, deixou-me com a imagem do ser humano: aquele que caminha cercado de uma névoa que, ao invés de o esconder, revela a sua luz interior. falou-me com amizade, bafejando-me com o seu fôlego pulsante, e eu senti-me um pouco menos sujo.
acredito não ter inimigos. todavia,
conheço algumas pessoas que vivem para plantar episódios nas costas de
quem já as ajudou. é dessas pessoas, que, abrindo a boca, sai um miasma
nauseabundo que não deixa margem para dúvidas: é merda o que lhes habita
o cérebro. naquele dia, não fora a visita de um poeta, eu podia ter
perdido a cabeça. felizmente, a sua aura, a sua existência permaneceu
ecoando por horas em meu redor. como Inácio de Loyola, fiz o meu
exercício espiritual e focalizei-me. os meus amigos contam-se pelos
dedos. entre uma infância, duas livrarias, muita música e uma faculdade
de letras, eles sabem quem são. amo e sou amado; vou tentando, cada vez
mais a custo, não fazer inimigos. para esses que tento não hostilizar,
digo apenas que deverão temer-me quando se depararem comigo a assobiar:
ao contrário deles, não estarei a cantarolar, mas a pensar.
fecho com um bem haja ao poeta, a quem devo a eventual salvação deste texto.
fecho com um bem haja ao poeta, a quem devo a eventual salvação deste texto.
Morte di Giulio Cesare, por Vincenzo Camuccini, 1798 |
Sem comentários:
Enviar um comentário