raramente saio da cidade em que nasci. se quiser ser honesto comigo
mesmo, devo auferir que nunca deixei a minha cidade: mesmo quando viajei
ansiava pelo regresso. os meus pensamentos, por mais distante que a
minha vida se tornasse, em momento algum apagaram as ruas, as praias, o
mar, os cheiros, as gentes. quando respiro, é a neblina que paira sobre
as areias o que me sai pela boca. quando falo, falo o que a cidade me
ensinou a dizer.
os anos ’80 foram os que me viram nascer
e ser infante: de algum modo, a cidade em que vivo parece-me pairar
naquela época. desde então, pouco terá mudado na sua forma e no seu
conteúdo. morreram poetas e a cidade empobreceu em sentidos que nem
todos querem ver. os nativos são os mesmos, apenas cientes de que
importa dizerem-se europeus: caminham do mesmo modo e têm as mesmas
dúvidas. alguns, atentos, tentam manter viva a obra dos poetas e bafejam
os cafés com as palavras que escolhem para não compreender. as
bibliotecas engordam, os estudantes mínguam sobre as páginas que lhes
vão queimando as pestanas. a casa da música é usada como símbolo de uma
nova cultura emergente, quando a cultura é cada vez mais apenas uma.
as gaivotas de eugénio estão tão puídas pela usura que para fazê-las pousar num poema, só mesmo se nele uma delas for esfacelada por um autocarro. durante os anos ’90, tudo na cidade começou a adormecer. e, por oposição, cada vez mais sem-abrigos acordavam na noite. uma sonolência inédita asfixiava a cidade e a minha meninice era angustiada pela descoberta de que nem tudo estava bem neste reino da dinamarca. por entre ídolos com pés de barro e uma consciência agudizada por leituras impróprias para a idade, cheguei velho à adolescência. então quis, como eugénio, nela permanecer para sempre: falhei. apenas sei que quanto mais raso, mais escrevo. venha o verão, que esta chuva já deprava.
amadeu liberto fraga
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