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História de Cabelos
I
Cortámos as madeixas de água e as madeixas de sal do mar
Aparámos o rochedo e os seixos
Uma escova e cabelo para fazer uma árvore
Varremos a praia
e no mar rejeitámos os cabelos inúteis com algas
II
O rio longa barba ruiva rente ao joelho do meu país
Cabeleireiro ousado
dias e noites
nunca a horas
III
Descem a colina
os olhos mais azulados que a fome dos tubarões
mais azulados que as axilas do céu
do amanhecer debruçando-se sobre a terra
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História de Pedras
I
Segredo da pedra vazia
que a picareta procura perfurar
onde o sol jamais penetra
Quanto terão de perseverar
Debruçados sobre o seu ferimento
a única riqueza
eles ignoram até onde a febre os doura
II
Dia batido na sua cave, na sua asa
batido no seu sexo de hermafrodita
dia de sangue nos templos da onda
e na palma dos mergulhadores
Um nome de flor na boca
Um nome de chamas no rasto das borboletas
no fundo das ruínas
III
Não podemos gravar senão um nome
um de cada vez
na morte
não temos direito senão a um elogio fúnebre
a um só epitáfio
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História de Viagem
I
O restolho do exílio
o mais terno dos limites
a sua sombra no diário de viagens
como uma rosa
II
O barco liberta-se da constrição do porto
como os braços exauridos de uma mulher
o esquecimento sobe a bordo
III
Amanhã não reconhecerás a terra
os cabelos brancos como o mar
ou careca como a colina
uma árvore para bengala
Amanhã não mais terás nome
Não furarás passagem
por entre ombros anónimos
Uma viúva estenderá os seus lençóis
na linha do teu horizonte
IV
O galo para cata-vento
A coruja para espelho
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História de Palavras
I
A tempestade com os seus porta-canetas desesperados
Não se lê tudo o que na terra está escrito
Da mais bela mensagem o padeiro fará talvez o pão
e daquele de cada mulher amada como apenas tu
cujas cartas concordam sob os passos do homem
entre as espigas de trigo então balançando ao sol
II
Matilha de dias alargados
de escritos espólios de caça
A trompa convoca cães espingardas
A ilha inundou os seus trapos
o bairro de lata seus ligeiros telhados
O dilúvio é para este ano
A nado a fuga no corpo
A nado o relâmpago no coração
As girafas são menos apressadas
III
De cada semente de obsessão
a palavra emerge impaciente
como uma arma incompreendida
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História de Olhos
I
Os falcões assombram o reino
de João Pestana**
Suas garras fixadas nas pálpebras
II
Ao preço do ouro de novos compromissos
lutando com cada trança de luz
a corda ao pescoço
o carrasco como refém
III
Ao longo das docas de éter
as pessoas acenam com a cabeça
Lajes com graffitis e signos
a âncora no fundo das águas
invejosa memória
O sal conserva a despedida
IV
Crepúsculo
espartilho de reivindicações hostis
Aurora
Paleta de esmalte da renúncia
a mulher nua
desliza
pelo olhar transparente do pintor
V
A morte para noiva
com luvas de missal
e azevinho na cintura
VI
Seus grandes poros dados à luz
Besta de pêlo amarelo acossada
a aldeia uiva ao lobo
VII
Belo caçador com andas
VIII
Para a procissão de cinzas pitorescas
para o soluço das trepadeiras das nações
para o balançar com bochechas ameaçadoras
a terra cospe o seu velho chumbo.
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* in "Le Seuil, Les Sables", pp. 183-188, Gallimard, 1990
versão muito livre de amadeu liberto fraga
** Este trecho fala de vendedores de areia e pós, no que aparenta ser uma remissão para um velho conto popular em que esse vendedor, um mago, asperge uma espécie de areia sobre os olhos das crianças que dormem para lhes influenciar os sonhos: os bem comportados teriam bons sonhos, os mal comportados teriam, já se vê, maus sonhos. Ao longo dos tempos este relato foi sofrendo variações mas o essencial manteve-se. Consciente ou inconscientemente, Hubert Reeves participou neste mito popular quando afirmou: "Somos todos feitos de pó de estrelas". No mundo anglo-saxónico este conto daria origem a Sandman, e por cá a João Pestana. Vi-me assim obrigado a abdicar de muita da poeticidade contida naqueles versos para tornar evidente ao leitor que aquele poema remete para o mundo dos sonhos. Infelizmente perde-se ali - além da figura do vendedor de pós - o termo areia (sable) que partilha com seuil (limite) o título dado à poesia completa pelo autor, que remete para a ideia de algo mágico que atravessa o limiar da nossa porta e invade a nossa intimidade - o sonho, a criação, a poesia portanto. Que tenha, pelo menos, prevalecido o carácter onírico da passagem.
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