quando era puto olhava para a máquina de escrever do meu
avô e não descansava enquanto ele não me deixava ir para lá mexer. a máquina
tinha manhas que só ele conhecia – certas teclas precisavam de certa força, ou
de certa subtileza –, o rolo, a fita, tinham uma arte que me era totalmente
interdita, sob pena de acabar com a fita estragada e os dedos tingidos. aquela olivetti, creio que era uma olivetti, ensinou-me algumas coisas.
por um lado, e muito antes de Herberto Helder ser do meu
conhecimento, que as mãos são instrumentos capazes de música e de verbo. por
outro, ensinou-me a paciência e a magia de ver texto nascer à frente dos meus
olhos, em simultâneo com a respiração o batimento – letra a letra. ensinou-me
ainda que a escrita é esforço, por mais bafejado que um tipo seja pelas musas
(tantas vezes cegas). e que para a máquina uma nota de encomenda ou um conto
têm a mesma ciência. e se um tipo se não cuida, acaba sujo.
escolho estas palavras e não outras, porque mais uma vez
veio à baila a omissão, portanto censura, de alguns versos de Álvaro de Campos
num manual de língua portuguesa para o 12º ano. digo mais uma vez porque – e muita
gente parece desconhecer este facto – esta censura não é nova. as edições da
Ática dos anos ’70 censuravam aqueles mesmos versos em livro. e em manuais,
desde os anos ’90 que essa censura se verificava sem grandes alaridos. foi
necessária a edição da obra pessoana pela Assírio & Alvim, nos anos ’80,
para que o grande público tivesse acesso à obra plena dos heterónimos.
o argumentário da editora, procurando justificar a opção
de pontilhar versos que abordam a pedofilia, parte de um pressuposto errado.
aquele não é o único poema de Campos que importa. poderiam optar pela Ode
Marítima ou outro texto de Campos, mas se optam pela Ode Triunfal não se pode
cortar o fôlego ao poeta. o uso de vernáculo, é sabido, servia a terapia de
choque modernista com que a geração de Orpheu visava abalar a burguesia.
esconder aqueles versos é adulterar todo um programa.
mas o que me incomoda nesta questiúncula não é tanto o
absurdo da censura em pleno séc. XXI – certamente, sim, os jovens de 16 ou 17
anos foram já expostos a muita coisa nos monitores dos seus aparelhos mais ou
menos portáteis –, mas que alguém com poder de decisão sobre os textos, alguém
que trabalha numa editora, considere que a poesia deve apenas mostrar o belo e
o bom. há aqui um retrocesso de mentalidade que não é compatível com o trabalho
de editor, menos ainda com o de um editor que arroga o título de uma das mais
importantes casas no que à manufactura de manuais escolares concerne.
quando um manual censurado chega às mãos de um jovem,
este não irá aprender a gostar de poesia. irá aprender que a poesia é
censurável, que há algo de errado em ser livre na escrita. e para isso, nunca,
mas nunca, contem comigo. atalhando muito: pedagogicamente, esse manual não
ensina senão a auto-censura. e não me parece que precisemos de formar adultos
que se censurem. precisamos de adultos que se saibam sujar no mundo sem se
tornarem sujos. como quem suja os dedos numa máquina de escrever ou num jornal
impresso.
que se leiloe a máquina de escrever royal
que o poeta usava na sociedade portuguesa de explosivos porque não pertencia
ao espólio, ainda entendo. mas a poesia, ao contrário do que alguns pensam, não
está à venda. sabotar um poeta, num manual escolar, não é pedagogia. sabotado,
o manual torna-se outra coisa. um instrumento de outra coisa. não se pode
conhecer a casa se não subirmos o vão de escada. sujidade é precisa,
branqueamento não.
amadeu liberto fraga
amadeu liberto fraga
( Fernando Pessoa em "flagrante delitro", cf. dedicatória a Ofélia em 1929 ) |
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