17/01/2019


            quando era puto olhava para a máquina de escrever do meu avô e não descansava enquanto ele não me deixava ir para lá mexer. a máquina tinha manhas que só ele conhecia – certas teclas precisavam de certa força, ou de certa subtileza –, o rolo, a fita, tinham uma arte que me era totalmente interdita, sob pena de acabar com a fita estragada e os dedos tingidos. aquela olivetti, creio que era uma olivetti, ensinou-me algumas coisas.
            por um lado, e muito antes de Herberto Helder ser do meu conhecimento, que as mãos são instrumentos capazes de música e de verbo. por outro, ensinou-me a paciência e a magia de ver texto nascer à frente dos meus olhos, em simultâneo com a respiração o batimento – letra a letra. ensinou-me ainda que a escrita é esforço, por mais bafejado que um tipo seja pelas musas (tantas vezes cegas). e que para a máquina uma nota de encomenda ou um conto têm a mesma ciência. e se um tipo se não cuida, acaba sujo.
            escolho estas palavras e não outras, porque mais uma vez veio à baila a omissão, portanto censura, de alguns versos de Álvaro de Campos num manual de língua portuguesa para o 12º ano. digo mais uma vez porque – e muita gente parece desconhecer este facto – esta censura não é nova. as edições da Ática dos anos ’70 censuravam aqueles mesmos versos em livro. e em manuais, desde os anos ’90 que essa censura se verificava sem grandes alaridos. foi necessária a edição da obra pessoana pela Assírio & Alvim, nos anos ’80, para que o grande público tivesse acesso à obra plena dos heterónimos.
            o argumentário da editora, procurando justificar a opção de pontilhar versos que abordam a pedofilia, parte de um pressuposto errado. aquele não é o único poema de Campos que importa. poderiam optar pela Ode Marítima ou outro texto de Campos, mas se optam pela Ode Triunfal não se pode cortar o fôlego ao poeta. o uso de vernáculo, é sabido, servia a terapia de choque modernista com que a geração de Orpheu visava abalar a burguesia. esconder aqueles versos é adulterar todo um programa.
            mas o que me incomoda nesta questiúncula não é tanto o absurdo da censura em pleno séc. XXI – certamente, sim, os jovens de 16 ou 17 anos foram já expostos a muita coisa nos monitores dos seus aparelhos mais ou menos portáteis –, mas que alguém com poder de decisão sobre os textos, alguém que trabalha numa editora, considere que a poesia deve apenas mostrar o belo e o bom. há aqui um retrocesso de mentalidade que não é compatível com o trabalho de editor, menos ainda com o de um editor que arroga o título de uma das mais importantes casas no que à manufactura de manuais escolares concerne.
            quando um manual censurado chega às mãos de um jovem, este não irá aprender a gostar de poesia. irá aprender que a poesia é censurável, que há algo de errado em ser livre na escrita. e para isso, nunca, mas nunca, contem comigo. atalhando muito: pedagogicamente, esse manual não ensina senão a auto-censura. e não me parece que precisemos de formar adultos que se censurem. precisamos de adultos que se saibam sujar no mundo sem se tornarem sujos. como quem suja os dedos numa máquina de escrever ou num jornal impresso. 
          que se leiloe a máquina de escrever royal que o poeta usava na sociedade portuguesa de explosivos porque não pertencia ao espólio, ainda entendo. mas a poesia, ao contrário do que alguns pensam, não está à venda. sabotar um poeta, num manual escolar, não é pedagogia. sabotado, o manual torna-se outra coisa. um instrumento de outra coisa. não se pode conhecer a casa se não subirmos o vão de escada. sujidade é precisa, branqueamento não.

amadeu liberto fraga



(seguindo o link, a Ode Triunfal completa: http://arquivopessoa.net/textos/2459)



( Fernando Pessoa em "flagrante delitro", cf. dedicatória a Ofélia em 1929 )

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